A lista dos culpados
Diversos comentadores – quase todos situados à direita – andam a regozijar-se pelo facto de Sócrates estar em vias de ser afastado da governação do país.
E vêem nisso um sinal altamente positivo, na medida em que tal significa, segundo eles, que o principal responsável pelo descalabro das contas públicas e pela situação de desastre económico-financeiro em que Portugal mergulhou vai ser removido do poder, abrindo-se um novo ciclo político com governantes preocupados em salvaguardar o interesse público – subentende-se: governantes do PSD, pois é esse o partido “naturalmente” apto para suceder ao PS.
Há mesmo quem pense que, com o PSD de Passos Coelho no poder, uma lufada de ar fresco soprará nas escolas e as piores e mais aberrantes “reformas” socratinas no ensino terão, finalmente, o merecido destino do «caixote de lixo da história».
Perante estas opiniões, cabe dizer duas ou três coisas.
Primeiro: não sendo nós suspeitos da menor simpatia por José Sócrates, e concordando que ele foi o pior primeiro-ministro num país em que esse cargo já foi ocupado por gente do nível de um Pinheiro de Azevedo, importa sublinhar que Sócrates não é o principal responsável pelo estado em que Portugal se encontra. Por grande que tenha sido o seu contributo para isso.
No momento actual, o pior que nos pode acontecer é deixarmos que a nossa inteligência seja capturada por análises simplistas, armadilhadas por antolhos ideológicos.
Se Portugal está como está, tal se deve a razões de ordem estrutural que transcendem, em muito, o período de governação de Sócrates. Vejamos as principais:
– o facto de a integração de Portugal na União Europeia ter sido feita de molde a confirmar e a assegurar as desvantagens da nossa posição assimétrica face aos países centrais;
– o facto de a primeira década de presença portuguesa na CEE (depois União Europeia) ter sido marcada pelo completo desperdício dos fundos estruturais que afluíram até nós, e por decisões de política económica que apenas acentuaram o carácter periférico e atrasado do nosso tecido produtivo, apostando-se no desmantelamento da agricultura e em sectores de mão de obra desqualificada e com baixos salários como factor competitivo – destinado, como hoje se vê, a ser rapidamente ultrapassado;
– o facto, decorrente do acima exposto, de que o fim do modelo das indústrias baseadas em trabalho intensivo e salários de miséria não possa ser acompanhado pela transição para um modelo assente na produção de bens transacionáveis de alto valor acrescentado (nada se fez para isso);
– o facto de a adesão à moeda única ter aprofundado ainda mais as dependências de Portugal em relação ao exterior, entregando o país à financeirização da economia, ao crescimento desproporcionado do sector bancário, empenhado em suscitar a procura interna e o consumo na base totalmente artificial do recurso ao crédito e ao endividamento (fenómeno que tanto afectou os particulares como as próprias empresas);
– e o facto, quase sempre negligenciado nos comentários políticos, de que a classe empresarial portuguesa se reduz, com raras e honrosas excepções, a duas categorias: o pato-bravo boçal e chico-esperto, que arruína as empresas, foge com o dinheiro e deixa atrás de si centenas ou milhares de trabalhadores no desemprego e com salários em atraso; e o grande chupador da teta do Estado, que vive em conluio com uma classe política corrompida até à medula, sempre à espreita das altas negociatas cozinhadas por baixo da mesa, das concessões atribuídas sem concurso público, das parcerias público-privadas que não cessam de cavar as finanças do Estado (e cuja origem, uma vez mais, é bem anterior à presença de Sócrates no Governo).
Ora, cada um destes factos não remete directamente para a governação socratina, a qual, quando muito, se limitou a prolongar tendências que já vinham de trás.
Na verdade, os três primeiros factos responsáveis pelo buraco em que estamos metidos ocorreram e foram consolidados no período de governação deste senhor:
E a explosão dos mercados financeiros em Portugal, consequência do acesso fácil ao crédito com taxas de juro reduzidas, aconteceu durante os governos deste cavalheiro:
Por isso, é de uma enorme miopia analítica querer empurrar a exclusiva responsabilidade para os braços do outro pseudo-engenheiro que nos saiu na rifa (por obra e graça do sufrágio universal…). De resto, os que hoje o criticam não deixaram, no passado, de aplaudir entusiasticamente as opções políticas que originaram os factos acima indicados, quando não participaram activamente na sua génese.
Todavia, também não é miopia menor esperar que este político emergente
consiga (ou sequer queira) redimir o país do desastre a que nos conduziram. O seu programa ideológico, cuja matriz neoliberal não faz questão de ocultar, significa apenas mais do mesmo. E o mesmo é a destruição vertiginosa dos direitos sociais dos trabalhadores, o seu empobrecimento como contrapartida de uma incessante redistribuição da riqueza nacional dos que pouco têm para os que muito acumulam.
Não perceber isto é não perceber nada. E não perceber nada implica, hoje em dia, ficar a esbracejar no pantanal. A menos que se tenha a conta bancária de um Belmiro de Azevedo ou a reforma choruda dos altos funcionários do Banco de Portugal (os mesmos que dizem que temos de nos conformar com um futuro de miséria envergonhada).
Na linha do nosso argumento, o Paulo Guinote escreveu dois “posts” brilhantes (do melhor que ele já publicou) que dizem o que tem de ser dito: aqui e aqui.
No país do faz-de-conta
O partido social-democrata, que na verdade é um partido neoliberal e conservador, reuniu com o partido socialista, que é, na verdade, um partido social-democrata rendido às políticas neoliberais, para aprovar um orçamento de Estado que é, na verdade, um roubo descarado aos funcionários públicos e à classe média.
Democracia exemplar
Toda esta encenação caricata em torno das negociações do Orçamento entre PS e PSD revelou também um traço muito sintomático sobre o modo como a partidocracia confiscou e perverteu por completo o sentido da democracia em Portugal (embora, desgraçadamente, tal não se verifique apenas entre nós).
De facto, jornalistas, “fazedores de opinião” e, provavelmente, muitos dos cidadãos comuns acharam natural que, num sistema de democracia representativa e parlamentar, dois grupos incumbidos pelos respectivos directórios partidários se tenham reunido à porta fechada para combinarem ou negociarem não se sabe bem o quê. Dada a total opacidade de todo este processo, podemos legitimamente interrogar-nos sobre o que foi, de facto, negociado e se o que vai aparecer em letra impressa corresponde às combinações feitas nos bastidores.
(Parêntese: mas não foi também isto que ocorreu nas famigeradas negociações entre os sindicatos de professores e o Ministério da Educação, cujas actas não havia meio de aparecerem? Pois é. A oligarquização da democracia chega a todo o lado…)
E é espantoso que tanta gente considere isto aceitável numa democracia em que a transparência dos actos políticos, condição necessária para o seu escrutínio público, deveria ser a regra elementar.
Nada disso. Aliás, pudemos mesmo ouvir o ministro Silva Pereira, com aquela cara de pau que só ele sabe ostentar, dizer repetidamente que as negociações nunca devem ser feitas na praça pública.
Pois é aí mesmo que elas deveriam ser feitas, pois só assim poderíamos controlar o que está a ser congeminado e estaríamos em condições de avaliar criticamente um processo que nos vai afectar de maneira profunda. Isso, porém, equivaleria a minar um poder assente em desigualdades e assimetrias profundas.
O secretismo é apenas mais um meio de que os poderes fácticos se servem para privar o cidadão comum de ter uma palavra a dizer sobre o seu futuro.
Aviso à navegação
Professores e restantes funcionários públicos,
não se esqueçam de colocar o vosso voto neste senhor em próximas eleições.
Os masoquistas agradecem (e os sádicos então nem se fala!).
Humilhados e ofendidos
E se o PS e o PSD tivessem, ao menos, o elementar pudor de não nos ofenderem com as suas pobres coreografias e encenações de bastidores – que revelam um peculiar entendimento da democracia – para, no fim, se chegar a isto?
É, no entanto, um resultado previsível, tendo em conta a qualidade dos actores envolvidos…
Sobre a greve em geral (que não, ainda, sobre a greve geral)
Tempos houve em que a greve era encarada, não como momento de protesto contra determinadas políticas, mas como a forma de luta mais eficaz para obrigar o patronato (ou o poder político) a aceitar as reivindicações dos trabalhadores ou, pelo menos, a aceitar a necessidade de negociar com os seus representantes. Os trabalhadores paravam o trabalho até o outro lado ceder às suas exigências.
Entendida desta forma, toda a greve tem, por natureza, uma duração indeterminada, pois não se sabe quando é que a referida cedência poderá ocorrer. Trata-se, no fundo, de um braço-de-ferro que condensa, em si mesmo, a ideia da luta de classes.
É claro que, noutras paragens, a greve ainda é, muitas vezes, entendida dessa forma. Por cá, no entanto, ela tem estado reduzida a uma forma de protesto, um pouco mais drástica mas de efeitos reduzidos.
Em Portugal, os sindicatos decretam, sistematicamente, greves de um só dia. E o resultado é conhecido: com maior ou menor adesão, os trabalhadores fazem um dia de greve (quase sempre isolado num ano civil), perdem um dia de salário, e…
… fica tudo na mesma. O governo, ou o patronato, não se sentem minimamente ameaçados ou pressionados para terem de ceder no que quer que seja.
Há poucos anos atrás, esses dias isolados de greve estavam tão rotinizados, nomeadamente entre os professores, que já praticamente ninguém aderia. A FENPROF, de resto, convocava essas greves com o mesmo empenho de quem cumpre um calendário entre dois bocejos: neste dia comemora-se o 5 de Outubro, naquele faz-se uma greve.
A figura da greve descredibilizou-se por completo.
Nestes tempos mais recentes deu-se, porém, uma transformação no nível de adesões ao exercício da greve, porque os trabalhadores sentem razões acrescidas para lutar.
E, contudo, as greves convocadas pelos sindicatos mantêm o seu carácter de formas de protesto, em lugar de serem efectivamente greves de reivindicação.
Assim sendo, há perguntas que, neste momento, deveriam estar a ser feitas, sobretudo quando pensamos no modo como os trabalhadores estão a ser conduzidos a formas cada vez mais acentuadas de exploração e de degradação dos seus direitos:
– Faz realmente sentido passar de greves de protesto (de um só dia) a greves de reivindicação (por tempo indeterminado)?
– E, se faz sentido, como operar essa transição?
(E como ultrapassar a conversa mole que nos diz que isso é impossível, que os trabalhadores não são mobilizáveis para formas de luta tão radical, que…, que…, que…?)
O sindicalismo-que-temos e o argumento da escassa combatividade dos trabalhadores – 2
Recentemente, pudemos assistir à promoção perversa do argumento da «escassa combatividade dos trabalhadores» na forma como a FENPROF e a FNE geriram a luta contra a entrega dos objectivos individuais dentro do combate mais geral contra o modelo de avaliação do desempenho docente.
Importa retornarmos a esse episódio, pois ele é bastante revelador.
Com efeito, os dirigentes sindicais repetiram até à saciedade esta ideia: «Nós até propusemos aos professores que se recusassem a entregar os objectivos individuais; mas a maior parte deles entregou-os. Portanto, se nesse ponto a luta dos professores sofreu um retrocesso, a culpa não foi nossa». Subentende-se: «A culpa é dos professores, que não souberam estar à altura do grande desígnio proposto pelas direcções sindicais».
Quem, no entanto, tenha acompanhado esse processo com atenção sabe que a história está mal contada por esses dirigentes.
É verdade que a maioria dos professores entregou os objectivos. Mas também é verdade que, em Novembro e até em Dezembro de 2008, os professores estavam largamente unidos e com vontade de ir mais longe na sua luta contra o Ministério da Educação.
Ora, acontece que as direcções sindicais se apressaram a arrefecer os ânimos em lugar de procurarem capitalizar esse sentimento de revolta e esse raro momento de determinação numa classe profissional que, de facto, não se caracteriza, habitualmente, por um elevado nível de combatividade.
E o arrefecimento foi conseguido através de uma forma de luta a que as direcções sindicais começaram, desde logo, por retirar todo o conteúdo, insistindo no argumento legalista de que os objectivos podiam não ser entregues, mas que a auto-avaliação final teria de ser entregue em função do cumprimento da lei – quando, note-se, era precisamente essa lei que os professores queriam ver revogada.
Pior: é hoje sabido que, um pouco por todo o lado, os dirigentes sindicais que então se dignaram ir às escolas tiveram, muitas vezes, um discurso desmobilizador em relação à própria não entrega dos objectivos individuais, desse modo minando o que afirmavam ser a sua grande estratégia de luta.
O resultado era previsível: desinformados, desorientados (e mal orientados), sentindo-se entregues a si próprios sem terem a retaguarda devidamente apoiada, muitos professores optaram por ceder e entregar os objectivos individuais, na percepção de que essa luta não teria futuro e que, de resto, seria curto-circuitada pelo desfecho anunciado – já que a entrega da auto-avaliação iria, na prática, caucionar o modelo que se estava a combater.
Nesse preciso momento, os dirigentes sindicais puderam, enfim, retomar o pleno controlo da iniciativa de um processo de contestação que, até então, tinha sido essencialmente impulsionado pelas bases. Os professores foram-se desmobilizando gradualmente, deixando todo o espaço de manobra a direcções sindicais que contavam com o fim da maioria absoluta do PS para regressarem ao cenário que tanto apreciam: a mesa de «negociações».
A sequência da história é por demais conhecida. O resultado desse regresso foi tão miserável e frustrante que não vale a pena insistir nele.
Há, no entanto, que reter aqui uma conclusão: se os trabalhadores portugueses em geral, e os professores em particular, parecem ser tão dificilmente mobilizáveis para lutar pelos seus direitos, as direcções sindicais têm uma parte significativa de responsabilidade nesse cenário.
De facto, preferem essa desmobilização, e até mesmo as derrotas que ela acarreta para o mundo laboral, desde que tal seja o preço a pagar (e são os trabalhadores que o pagam) pela preservação do controlo das direcções sindicais sobre o programa de reivindicação.
Nisto as direcções sindicais partilham, com o grande patronato e com o poder político, uma mesma atitude: o enorme receio de que os trabalhadores tomem, nas suas mãos, a iniciativa de luta. Sabe-se lá o caos que daí pode resultar!
O sindicalismo-que-temos e o argumento da escassa combatividade dos trabalhadores – 1
Um dos motivos que os dirigentes sindicais muitas vezes evocam para justificarem o carácter timorato e desmobilizador de quase todas as suas «formas de luta» é a ideia de que os trabalhadores portugueses – e isto vale, naturalmente, para os professores – são pouco combativos, têm escassa consciência política, não possuem uma cultura de defesa activa dos seus direitos, e, por tudo isso, nunca se mostram predispostos a lutas reivindicativas prolongadas e desgastantes.
O argumento não costuma ser apresentado de modo tão brutal. Mas, sussurradamente, é esta noção que é veiculada.
Aqueles que, por exemplo, defendem a realização de greves por tempo indeterminado quase sempre recebem, da parte dos dirigentes sindicais, réplicas como «Mas podem assegurar que os trabalhadores (portugueses) têm a determinação suficiente para levar isso até ao fim?»
Para efeitos de discussão, vamos fingir que este argumento não é um mero alibi ao serviço das tácticas e estratégias político-partidárias que contaminam o sindicalismo-que-temos. Vamos, pois, tentar analisá-lo como um argumento sério.
Terão os dirigentes sindicais razão?
Em princípio, uma visão impressionista, ou até mesmo empiricamente fundamentada, da realidade portuguesa parece confirmar o diagnóstico sindical. De facto, é sabido que os índices de participação cívica dos portugueses são diminutos, e que, encerrado o período heróico do pós-25 de Abril, a chamada «sociedade civil» se arrasta numa situação anémica.
Além disso, os estudos disponíveis dão igualmente conta da redução acentuada das taxas de sindicalização em Portugal nas últimas décadas, ainda que esse fenómeno seja explicado, não apenas pela variável da escassa vivência da cidadania, mas também pelas profundas transformações no mundo do trabalho que ocorreram durante esse período. E não só: é muito provável que tenhamos de acrescentar outro factor importante: o facto de ter crescido, entre muitos trabalhadores portugueses, a insatisfação relativa ao tipo de sindicalismo que temos.
Neste ponto, convém, aliás, evitar conclusões precipitadas. Taxas reduzidas de sindicalização não significam, necessariamente, menor combatividade dos trabalhadores. Em 2004, os franceses, juntamente, com os espanhóis, estavam ainda menos sindicalizados do que os portugueses. E, contudo, a França é, como se viu recentemente, o país europeu onde as lutas laborais têm sido mais renhidas.
A verdade é que, em Portugal, os sindicatos não têm sabido, ou querido, inverter o seu próprio declínio.
Tal inércia é, em grande parte, explicada pelas duas tradições que condicionam o funcionamento interno das estruturas sindicais: por um lado, o seu oligarquismo funcional, conducente ao centralismo e à restrição da participação democrática na tomada de decisões, um oligarquismo que afasta e aliena as bases relativamente ao topo das direcções, e que se vê reforçado pela tendência, também ela oligárquica, dos partidos políticos que controlam as direcções sindicais (e aqui não estamos a pensar apenas no Partido Comunista, pois essa tendência é transversal a todos os partidos com influência no meio sindical); por outro lado, a já referida imersão dos sindicatos na cultura da «concertação social», que os acomodou na preferência dos consensos moles, levando-os a evitar a todo o custo uma política de confronto aberto.
Estas duas tradições têm contribuído para que as direcções sindicais não cultivem, entre os grupos profissionais que supostamente representam, uma atitude de mobilização e uma predisposição psicológica para formas de luta mais exigentes. A mobilização é quase sempre tíbia, e fica reservada para momentos muitos pontuais, invariavelmente desligados de uma sequência lógica de iniciativas de reinvindicação, momentos que relevam mais de certas tácticas político-partidárias do que de uma qualquer estratégia global com um mínimo de coerência.
Coisas que nos deixam perplexos
Ok, pronto, Carvalho da Silva não disse que aprova o Orçamento. Seria demasiado surreal.
Mas…
… mesmo assim…
é este o discurso de quem se espera que lidere os trabalhadores numa série de combates duríssimos e exigentes contra as medidas do Governo-serventuário-de-Bruxelas-e-dos-banqueiros?
Ao menos este outro “granda” dirigente sindical já nem tem vergonha de defender a aprovação do Orçamento.
Com estes senhores adivinham-se grandiosas jornadas de luta…
O vazio na presidência
Ontem toda a gente ficou a saber o que toda a gente já sabia: que Cavaco Silva se recandidata ao cargo de Presidente da República. Se, enquanto associação e movimento de professores, não nos compete tomar posição na refrega eleitoral que aí vem, podemos, no entanto, fazer uma leitura e um balanço do que foi o mandato de Cavaco Silva face à recente luta dos professores e às políticas de ensino adoptadas nestes últimos cinco anos.
E aí há que dizer que o saldo da actuação deste Presidente da República é francamente negativo.
De facto, perante o assalto sem precedentes à qualidade da Escola Pública, com a multiplicação do fabrico de falso “sucesso escolar” , quer através da degradação dos níveis de exigência nos exames nacionais, quer através dessa enorme e dispendiosa fraude chamada «Novas Oportunidades», Cavaco Silva optou sempre pelo silêncio cúmplice ou pelo refúgio em palavras vagas e lugares-comuns inócuos.
Perante o ataque assanhado às condições laborais e à dignidade profissional da classe docente, perante um discurso governativo apostado em fragilizar e rebaixar publicamente a imagem dos professores, perante a introdução de divisões espúrias e de um mal-estar generalizado no seio das escolas, Cavaco Silva manteve o mesmo silêncio e a mesma indiferença.
É, de resto, certo e sabido que Maria de Lurdes Rodrigues, a pior e a mais ofensiva ministra da Educação das últimas décadas, contou sempre com a aprovação e o apoio tácito do actual Presidente da República. Nem o silêncio deste último quis dizer outra coisa.
Não esperávamos, naturalmente, que Cavaco Silva tomasse um partido claro no conflito que opôs (e opõe) os professores ao Ministério da Educação. Mas, da nossa parte, era legítimo desejar que a «magistratura de influência» que ele tanto gosta de referir se manifestasse, ao menos, através de uma palavra de apreço pelo trabalho e pela relevância dos professores na sociedade portuguesa.
Essa palavra, se proferida no momento certo, teria sido um sinal da maior importância para os professores deste país, agredidos que estavam pela sistemática arrogância e pelo mais entranhado desprezo com que Sócrates e a equipa de Lurdes Rodrigues entenderam brindá-los.
E essa palavra, que Cavaco Silva nunca teve a hombridade de pronunciar, teria constituído também uma chamada de atenção para o Governo de que este teria de refrear o seu frenesim de rebaixamento dos professores.
Essa palavra, porém, nunca existiu, e nem sequer tardiamente chegou a ser articulada.
No dia 24 de Janeiro de 2009, os vários movimentos independentes de professores, entre os quais a APEDE, promoveram uma concentração em frente do Palácio de Belém, justamente para que os professores fizessem ouvir a sua indignação junto do Presidente da República. Apesar de, no final dessa iniciativa, terem sido recebidos por uma sua assessora, tudo indica que o protesto embateu, uma vez mais, na indiferença “coerentemente” demonstrada por Cavaco Silva.
Por tudo isto, temos de ser claros: não nos regozijamos com o anúncio que agora foi feito (sem surpresa para ninguém) da sua recandidatura. Confrontado com a luta dos professores, Cavaco Silva soube apenas dar provas de uma monumental vacuidade.
Só não é uma carta fora do baralho, porque nem sequer chegou a lá estar.
Para uma luta transnacional: os primeiros sinais
Em complemento de tudo o que temos dito nos “posts” anteriores, poderíamos acrescentar:
Não será talvez necessário recorrer a formas de luta mais radicais ou extremas – que decorrem da percepção de quem já não vê outras saídas -, se as organizações laborais se mostrarem à altura das exigências do momento actual.
Da Bélgica vem agora um exemplo eloquente:
Entretanto, já foi constituído um Comité Bélgica-França de Solidariedade.
Surgem, pois, os primeiros sinais de que os trabalhadores do espaço europeu – e algumas das suas organizações mais lúcidas – começam a perceber que a eficácia das lutas laborais só se atinge no plano das solidariedades e das alianças transnacionais.
Desobediência civil: passar da lógica do um à lógica dos muitos
Quando falamos em desobediência civil, há um conjunto de princípios que importa, desde já, esclarecer:
1 – A desobediência civil é uma forma de luta de tal modo radical que só uma situação extrema consegue gerar o potencial de revolta e de coragem para que ela possa ser colocada em prática.
2 – Numa cultura que continua a privilegiar o primado da lei, mesmo quando a lei está construída para impedir sistematicamente a luta legal contra a injustiça, a desobediência civil só pode ser percepcionada como um risco.
3 – As condições subjectivas para o exercício da desobediência civil assentam na percepção de que as formas de luta legal se esvaziaram e de que a alternativa (renunciar à luta e aceitar a lei) é muito pior do que a punição por essa desobediência.
4 – A opção pela desobediência civil é indissociável de uma cultura do desespero, quando este atingiu o nível em que o medo cede lugar à revolta.
5 – O sucesso de um movimento de desobediência civil exige, necessariamente, que os trabalhadores passem de uma postura isolacionista, ensimesmada nos cálculos individuais – e, por isso, condenada ao fracasso – à consciência de que, juntos e multiplicados por milhares, os trabalhadores têm uma força avassaladora e indomável.
6 – Sendo uma escolha eminentemente individual, a decisão pela desobediência civil só sai reforçada no quadro de uma opção colectiva o mais alargada possível.
7 – O contrário do referido no ponto anterior não é desobediência civil: é suicídio individual que não leva a lado algum.
8 – Numa situação extrema (como a que, em breve, quase todos os trabalhadores estarão a viver), as organizações laborais com capacidade de mobilização podem (e devem) apoiar as acções de desobediência civil.
9 – A desobediência civil não se decreta, como não se decreta qualquer outra forma de luta: as lutas laborais devem ser colectivamente discutidas e decididas pelos trabalhadores.
10 – Na fase em que nos encontramos, não é possível prever se chegaremos a um ponto em que os trabalhadores estarão subjectivamente dispostos a abraçar a desobediência civil – o que não significa que tenhamos de abdicar de a pensar como forma de luta extrema para situações extremas.
A luta dos professores no futuro – 5: A questão dos sindicatos
A discussão do papel dos sindicatos tem de ser feita seriamente (num âmbito que, aliás, ultrapassa a esfera de intervenção dos professores, pois estende-se a todos os grupos profissionais e até a sectores hoje excluídos do exercício de uma profissão, como sejam os desempregados). Quando dizemos «seriamente» queremos, com isso, sublinhar a necessidade de excluir preconceitos, pré-juízos, ideias-feitas e dogmatismos. Não é possível, por exemplo, entrar num debate sério com os fanáticos do sindicalismo-que-temos, para os quais a menor crítica ou discordância relativamente à actuação dos sindicatos equivale a um crime de lesa-pátria. A esses é melhor deixá-los entregues ao conforto das suas certezas, sabendo nós que nenhuma evidência os fará mover um milímetro.
Os sindicatos-que-temos – e é desses que importa falar, pois não há outros – apresentam dois estrangulamentos graves, um de ordem estrutural e outro de natureza conjuntural. O primeiro releva da tendência para o oligarquismo que sempre se apodera das organizações de grande escala, as quais tendem a perpetuar as direcções do topo, a monopolizar a representação do respectivo sector profissional, a desconfiar de todas as iniciativas autónomas e a procurar suprimi-las, a afastar-se dos trabalhadores que supostamente representam e a estabelecer relações preferenciais (e cúmplices) com os poderes instituídos. Sociológica e historicamente, a oligarquização dos sindicatos é paralela à (e afim da) oligarquização dos partidos.
O segundo estrangulamento inerente aos sindicatos-que-temos prende-se, precisamente, com a sua apropriação pelos partidos políticos. Ela não está necessariamente inscrita no código genético das organizações sindicais, mas todos sabemos que, em Portugal, os sindicatos mais influentes estão, há muitos anos, subordinados a lógicas partidárias que lhes retiram qualquer independência efectiva. Tal subordinação leva a que as lutas laborais sejam conduzidas de acordo com interesses e com agendas muitas vezes estranhas aos interesses objectivos dos trabalhadores. Os sindicatos dos professores estão muito longe de ser excepção a esta lamentável regra.
E, contudo, os sindicatos continuam a ser, pela dimensão do seu aparelho e pela logística correspondente, as únicas organizações com meios para mobilizar e liderar os trabalhadores em geral e os professores em particular. Mais especificamente, pelo menos no caso português, só os sindicatos estão verdadeiramente em condições de concretizar o segundo princípio (alínea b) enunciado pelo Luiz Sarmento no texto que citámos atrás, e só eles podem realizar o terceiro princípio numa escala de grande dimensão (nacional e transnacional).
Em contrapartida, os sindicatos mostram-se totalmente impreparados para dar corpo ao primeiro princípio (alínea a), o da desobediência civil, visto que todo o seu historial nos últimos trinta anos os tornou reféns do «fetiche da legalidade» a que o Luiz se refere. De facto, o processo de legitimação dos sindicatos, no quadro do contrato social subjacente ao Estado-Providência, implica que a desobediência civil seja impensável para quem os dirige. Os sindicatos foram aceites à luz desse contrato para, em grande medida, normalizarem, conterem e disciplinarem as lutas dos trabalhadores. Essas lutas nunca podiam exceder os limites legais definidos por um capitalismo «civilizado», no qual as reivindicações dos trabalhadores eram, muitas vezes, resolvidas por «acordos de cavalheiros».
Ora, a radicalidade do ataque actual aos direitos dos trabalhadores (professores incluídos) faz com que a legalidade se torne no instrumento principal de destruição do próprio Direito. A uma legalidade «selvagem» só se pode responder com lutas «selvagens», desenquadradas da lei.
Vejamos um exemplo prático. Os sindicatos convocam uma greve, essa greve está a ser um sucesso, e o Governo reage com uma requisição civil (ou com uma lei de última hora que define «serviços mínimos» de tal modo abrangentes que, na prática, implicam o esvaziamento da greve). Nos tempos que correm, a única resposta dos trabalhadores à altura das exigências da luta seria manterem-se em greve, ocupando os postos de trabalho sem recuar um centímetro. É altamente duvidoso que os nossos sindicatos tenham vontade e determinação de liderança para orientarem os trabalhadores nesse sentido e, sobretudo, para lhes darem força e coragem na retaguarda.
A cultura dos sindicatos-que-temos é uma cultura do controlo, da moleza e da desmobilização táctica, sempre que esta parece servir as tais agendas político-partidárias que há muito dominam a lógica de actuação dos dirigentes sindicais.
A conclusão é, pois, preocupante: os sindicatos têm uma capacidade organizativa que os movimentos independentes nunca terão, mas, ao mesmo tempo, não possuem um capital de luta e uma cultura de combate capaz de ultrapassar os limites impostos por uma legalidade que é, em si mesma, a própria negação do Estado de direito.
Contrariar este cenário vai ser um dos maiores desafios que esperam os professores, todos os restantes trabalhadores deste país e os da Europa, pois o mal que tentámos aqui diagnosticar afecta, desgraçadamente, muitas outras latitudes.
A luta dos professores no futuro – 4: Com quem lutar
Começamos por destacar um comentário que o José Luiz Sarmento deixou num nosso “post” anterior, comentário que sintetiza, na perfeição, os desafios e as exigências que deverão nortear o combate futuro dos professores:
As lutas dos professores têm portanto que seguir estes princípios:
a) desvinculação do fetiche da legalidade, uma vez que a legalidade está armadilhada contra a res publica e a favor dos seus inimigos;
b) coordenação com outras classes profissionais de cujo prestígio e autoridade depende em larga medida, tal como no nosso caso, a saúde e a própria sobrevivência da República;
c) coordenação com outras forças que se oponham, no âmbito europeu, à contra-reforma anti-republicana em curso nos últimos trinta anos, contra-reforma esta que passa pela subversão de tudo o que seja autoridade profissional e pelo desmantelar de tudo o que seja serviço público.
Acontece que a articulação destes três princípios levanta, de forma especialmente acutilante, duas questões: a organização da luta e a sua liderança. Suscita, em suma, a questão de saber com que organizações os professores poderão e deverão contar.
Por outras palavras: precisamos de começar a ponderar diversas alternativas:
– Devem os combates do futuro assentar primordialmente na acção local, ao nível das escolas ou redes de escolas organizadas à margem de qualquer organização formal (isto é, independentemente dos sindicatos)?
– Deve o essencial da luta futura dos professores ser liderada pelos sindicatos?
– Ou podemos conceber uma relação virtuosa entre as duas alternativas acima expostas?
Para percebermos melhor o que se está a passar
Contra todos os que nos querem inculcar a ideia de que a perda de direitos e a redução de salários são fatalidades inescapáveis, das quais ainda por cima somos culpados, importa ler um artigo do Guardian a que fizemos referência num “post” mais baixo. O Luiz Sarmento em boa hora traduziu esse texto da língua de Shakespeare para a língua de Camões, pelo que agora podem lê-lo aqui.
A luta dos professores no futuro – 3: Como lutar
No momento presente, os professores vivem num estado de desânimo, à mistura com o temor e o sentimento de insegurança, comuns a tantos trabalhadores deste país, independentemente de exercerem a sua profissão no sector público ou no privado.
E sabemos bem que esse estado de espírito é a melhor porta de entrada para o poder económico, e os seus serventuários políticos, imporem um programa de destruição maciça dos direitos sociais e de uma perversa redistribuição da riqueza (dos que menos têm para os que mais têm).
Num tal contexto, parece utópico falar de resistência e de acções de luta.
E, contudo, exigir o «impossível» é, no contexto actual, a única forma de realismo político (parafraseando o velho Marcuse). Caso contrário, teremos de aceitar a realidade da miséria como único horizonte viável. O que é, de todo, inviável!
Sendo assim, e na esperança de que os professores regressem à disposição de sacudir a canga, deixamos aqui algumas observações sobre a perspectiva de combates futuros:
1 – Antes de mais, há que reconstruir a unidade dos professores em cada escola, pois é nos territórios locais que a resistência terá de ser desenvolvida. E só na unidade será possível dizer não aos ditames despóticos do Ministério da Educação, do Governo em geral, ou de qualquer directorzinho mais “zeloso”.
2 – Em segundo lugar, importa recuperar uma unidade nacional dos professores, que chegou a existir e que foi desbaratada.
3 – Em terceiro lugar, os professores deveriam poder articular as suas lutas com as de outros grupos profissionais, começando pelos professores do ensino superior que estejam dispostos a desenvolver as suas próprias formas de resistência.
4 – Tendo em conta que se começa a esboçar a vontade de se partir para estratégias de desobediência civil, os professores, em articulação com outros grupos profissionais, e na unidade já referida, têm um vasto campo onde essa desobediência pode ser exercida:
– Greve de zelo a todas as tarefas burocráticas que não tenham incidência directa nas actividades lectivas.
– Recusa de cumprir quaisquer exigências decorrentes da avaliação do desempenho docente.
– Greve a todas as actividades de substituição.
– Greve às avaliações dos alunos.
– Recusa de realizar acções de formação enquanto não for desbloqueada a progressão na carreira.
Repetimos: a única alternativa à «utopia» aqui proposta é um futuro indefinido de empobrecimento avassalador da qualidade e da decência da nossa profissão.
E é isso que os professores vão querer?
A luta dos professores no futuro – 2: Porquê lutar (continuação)
2 – Para além do combate essencial por uma gestão democrática das escolas, que passa pela eliminação imediata da figura do director-tiranete e correia de transmissão do Ministério da Educação, os professores vão ser confrontados, já neste ano e no próximo ano lectivo, com todas as medidas altamente gravosas que decorrem do Orçamento de Estado que o PS – com a mais que provável benção do PSD – se prepara para impor ao país.
Essas medidas orçamentais não vão ter um alcance meramente financeiro. Elas constituem, de facto e na prática, uma completa reconfiguração das relações laborais no seio das escolas, do seu funcionamento, da posição de cada professor no quadro da estrutura escolar, etc. Tais medidas inserem-se, pois, na forma como os poderes vigentes se estão a aproveitar da crise para transformar radicalmente, num sentido opressivo e fascizante, a paisagem social onde vivemos, destruindo direitos sociais tão duramente conquistados e que tínhamos (pobre ilusão) por adquiridos.
O brutal corte na dotação orçamental prevista para o ensino vai criar a oportunidade para que o Governo acentue ainda mais, e de forma tendencialmente irreversível (se não houver resistência), os aspectos mais graves da proletarização dos professores:
– Como o Paulo alertou aqui e se pode ouvir aqui, está em curso o desiderato de pôr os professores a fazer, nas horas da sua componente não lectiva, o que hoje é feito por professores contratados. Em nome da «optimização» dos recursos, promete-se o desemprego certo a milhares de professores que são o elo mais fraco do sistema, e sobrecarrega-se com tarefas adicionais os professores de um quadro cada vez mais fragilizado.
Se a isto juntarmos o agitar de chantagens e de medos por parte das direcções das escolas, alinhadas que estão com quem lhes protege o poleiro, temos o cenário completo de um futuro profissional miserável e depressivo, ainda para mais privado de qualquer horizonte de progressão material.
Os professores vão ficar mais pobres e mais explorados.
E esta é outra razão de peso para se insurgirem.
Um texto fundamental de Boaventura de Sousa Santos
Embora parte do parágrafo final nos levante várias dúvidas (entre outros aspectos, é discutível que a candidatura de Manuel Alegre represente o projecto político de que este país necessita), o texto que a seguir publicamos reveste-se da maior importância para pensarmos o momento actual. Reproduzimo-lo daqui:
«Se nada fizermos para corrigir o curso das coisas, dentro de alguns anos se dirá que a sociedade portuguesa viveu, entre o final do século XX e começo do século XXI, um luminoso mas breve interregno democrático. Durou menos de 40 anos, entre 1974 e 2010. Nos 48 anos que precederam a revolução de 25 de abril de 1974, viveu sob uma ditadura civil nacionalista, personalizada na figura de Oliveira Salazar. A partir de 2010, entrou num outro período de ditadura civil, desta vez internacionalista e despersonalizada, conduzida por uma entidade abstrata chamada “mercados”.
As duas ditaduras começaram por razões financeiras e depois criaram as suas próprias razões para se manterem. Ambas conduziram ao empobrecimento do povo português, que deixaram na cauda dos povos europeus. Mas enquanto a primeira eliminou o jogo democrático, destruiu as liberdades e instaurou um regime de fascismo político, a segunda manteve o jogo democrático mas reduziu ao mínimo as opções ideológicas, manteve as liberdades mas destruiu as possibilidades de serem efetivamente exercidas e instaurou um regime de democracia política combinado com fascismo social. Por esta razão, a segunda ditadura pode ser designada como “ditamole”.
Os sinais mais preocupantes da atual conjuntura são os seguintes. Primeiro, está a aumentar a desigualdade social numa sociedade que é já a mais desigual da Europa. Entre 2006 e 2009 aumentou em 38,5% o número de trabalhadores por conta de outrem abrangidos pelo salário mínimo (450 euros): são agora 804 mil, isto é, cerca de 15% da população ativa; em 2008, um pequeno grupo de cidadãos ricos (4051 agregados fiscais) tinham um rendimento semelhante ao de um vastíssimo número de cidadãos pobres (634 836 agregados fiscais). Se é verdade que as democracias europeias valem o que valem as suas classes médias, a democracia portuguesa pode estar a cometer o suicídio.
Segundo, o Estado social, que permite corrigir em parte os efeitos sociais da desigualdade, é em Portugal muito débil e mesmo assim está sob ataque cerrado. A opinião pública portuguesa está a ser intoxicada por comentaristas políticos e económicos conservadores – dominam os media como em nenhum outro país europeu – para quem o Estado social se reduz a impostos: os seus filhos são educados em colégios privados, têm bons seguros de saúde, sentir-se-iam em perigo de vida se tivessem que recorrer “à choldra dos hospitais públicos”, não usam transportes públicos, auferem chorudos salários ou acumulam chorudas pensões. O Estado social deve ser abatido. Com um sadismo revoltante e um monolitismo ensurdecedor, vão insultando os portugueses empobrecidos com as ladainhas liberais de que vivem acima das suas posses e que a festa acabou. Como se aspirar a uma vida digna e decente e comer três refeições mediterrânicas por dia fosse um luxo repreensível.
Terceiro, Portugal transformou-se numa pequena ilha de luxo para especuladores internacionais. Fazem outro sentido os atuais juros da dívida soberana num país do euro e membro da UE? Onde está o princípio da coesão do projeto europeu? Para gáudio dos trauliteiros da desgraça nacional, o FMI já está cá dentro e em breve, aquando do PEC 4 ou 5, anunciará o que os governantes não querem anunciar: que este projeto europeu acabou.
Inverter este curso é difícil mas possível. Muito terá de ser feito a nível europeu e a médio prazo. A curto prazo, os cidadãos terão de dizer basta! Ao fascismo difuso instalado nas suas vidas, reaprendendo a defender a democracia e a solidariedade tanto nas ruas como nos parlamentos. A greve geral será tanto mais eficaz quanto mais gente vier para a rua manifestar o seu protesto. O crescimento ambientalmente sustentável, a promoção do emprego, o investimento público, a justiça fiscal, a defesa do Estado social terão de voltar ao vocabulário político através de entendimentos eficazes entre o Bloco de Esquerda, o PCP e os socialistas que apoiam convictamente o projeto alternativo de Manuel Alegre.»
Uma desobediência civil emergente?
Afinal, parece que não somos só nós a pensar nisto. Outras vozes começam a movimentar-se no mesmo sentido. Este homem deu o primeiro passo, com coragem e desassombro.
Agora importa que isto não se fique pelo mundo virtual das bravatas blogosféricas e passe mesmo à dimensão de um movimento social.
A luta dos professores no futuro – 1: Porquê lutar
Neste momento, tudo indica que os tempos que se avizinham nas escolas deste país conseguirão ser, em tudo, muito piores do que tudo o que conhecemos antes. E nesse «antes» incluímos o nefasto período de Maria de Lurdes Rodrigues – ainda que o futuro lamentável reservado para o sistema de ensino em Portugal muito deva às leis forjadas nessa fase, leis que se mantêm intacta e que continuam a minar o quotidiano das escolas.
Num passado recente, os professores souberam mobilizar-se para combater iniquidades que eram, objectivamente, inferiores a tudo o que já está instalado no terreno e a tudo o que se prepara. Consideramos, pois, totalmente absurdo e incompreensível que, no futuro próximo, os professores se mostrem incapazes de lutar contra medidas e imposições cujo impacto nas suas vidas profissionais se adivinha o mais nocivo possível.
Este texto, e os próximos que publicaremos, constitui uma aposta na recuperação da consciência política dos docentes e na sua capacidade de resistência. Estando cientes de que este é um tempo de receios, de ansiedades, de desânimo e de profunda desorientação, entendemos que nada está perdido e que nada é irreversível – desde que as pessoas tenham dignidade suficiente para lutar pelos seus direitos.
Neste primeiro texto, vamos tentar proceder a um levantamento dos principais focos nos quais radicam, hoje, os maiores estrangulamentos na vida das escolas, as causas mais notórias de perda de direitos, de degradação do quotidiano profissional e da própria identidade dos professores. Cada um desses focos representa um motivo para que os professores regressem a uma luta bem determinada:
1 – O novo modelo de administração escolar, que nunca cessámos de criticar, está agora a revelar toda a extensão dos seus malefícios para o exercício de uma profissão docente em condições de respeito e de salvaguarda dos direitos individuais. Como era de prever, a figura do director é a expressão acabada da instauração de relações laborais marcadas pela completa assimetria na distribuição do poder, pelo fim da partilha democrática nos processos de decisão, pelo despotismo e pela arbitrariedade. De todos os lados nos chegam informações de como muitos directores impõem a sua vontade da forma mais autoritária, recorrendo à pressão e à chantagem sobre os colegas – que eles não encaram como tal, mas como meros subordinados. E de todos os lados percebemos que, sem o menor escrutínio democrático, boa parte dessas decisões se reflecte negativamente na própria organização do funcionamento das escolas. Os directores vêem-se como representantes do Ministério no interior das escolas, como seus cães-de-fila, em lugar de se encararem como representantes da comunidade educativa que, em última análise, lhes conferiu o poder de que usufruem. De resto, o decreto que regulamenta a administração escolar permite que todos os professores nomeados para determinados cargos pelo director sejam, por sua vez, encarados como representantes do director junto dos colegas, e não o contrário. Isso já está a acontecer com a figura dos coordenadores de departamento, e toda a gente sabe o clima insuportável que estas micro-formas de poder estão a introduzir nos estabelecimentos de ensino.
Por tudo isto, entendemos que, num futuro próximo, o modelo de gestão escolar em vigor terá de ser o principal alvo do combate dos professores. Sem isso, todas as restantes lutas ficam, à partida, armadilhadas, visto que haverá sempre uma força de bloqueio no interior das escolas. Destruir esse nó cego, restaurar o exercício da autoridade democrática no espaço laboral dos profissionais do ensino, é a condição necessária para a luta por escola pública decente.