O fascismo financeiro
Em 1998, quando ainda não se falava em crise económico-financeira – ainda que as vozes mais lúcidas alertassem então para os riscos da desregulação dos mercados -, Boaventura de Sousa Santos publicou um livrinho intitulado Reinventar a Democracia. Aí, a páginas tantas, o autor referia-se à emergência do que chamava «fascismo societal». Dizia ele que
Não se trata do regresso ao fascismo dos anos trinta e quarenta. Ao contrário deste último, não se trata de um regime político mas antes de um regime social e civilizacional. Em vez de sacrificar a democracia às exigências do capitalismo, promove a democracia ao ponto de não ser necessário, nem sequer conveniente, sacrificar a democracia para promover o capitalismo. Trata-se, pois, de um fascismo pluralista e, por isso, de uma forma de fascismo que nunca existiu.
Em seguida, o sociólogo passava a elencar as formas desse fascismo societal, e terminava justamente no fascismo financeiro:
É o fascismo que comanda os mercados financeiros de valores e moedas, a especulação financeira, um conjunto hoje designado por economia de casino. Esta forma de fascismo societal é a mais pluralista, na medida em que os movimentos financeiros são o produto de decisões de investidores individuais ou institucionais espalhados por todo o mundo e, aliás, sem nada em comum senão o desejo de rentabilizar os seus valores. Por ser o mais pluralista é também o fascismo mais virulento porque o seu espaço-tempo é o mais refractário a qualquer intervenção democrática. (…) Este espaço-tempo virtualmente instantâneo e global, combinado com a lógica do lucro especulativo que o sustenta, confere imenso poder discricionário ao capital financeiro, praticamente incontrolável apesar de suficientemente poderoso para abalar, em segundos, a economia real ou a estabilidade política de qualquer país. (…) Os mercados financeiros são uma das zonas mais selvagens do sistema mundial, se não mesmo a mais selvagem. A discricionaridade no exercício do poder financeiro é total e as consequências para os que são vítimas dele – por vezes, povos inteiros – podem ser arrasadoras.
Ora, Sousa Santos sublinhava até que ponto esta forma, particularmente «selvagem», de capitalismo estava a servir de modelo para instituições de regulação global, a uma escala transnacional. Ele dava o exemplo do Acordo Multilateral de Investimentos, mas poderia também ter ilustrado o seu tópico com a construção das instituições da União Europeia, a começar pela famosa «independência» (em relação aos Estados) do Banco Central Europeu. Hoje está à vista de todos – pelo menos dos que não têm antolhos neoliberalóides – a que conduziu o modo como os cidadãos europeus foram totalmente afastados do processo de institucionalização da orgânica política da Europa: nada menos do que a uma estratégia insidiosa de abolição efectiva da democracia nos países que aceitaram as regras do Tratado de Maastricht, mesmo que os formalismos democráticos se continuem a manter para consumo ilusório. A isto podemos chamar, de facto, fascismo financeiro.
Este artigo, escrito com ironia amarga, explica-o na perfeição.