Democracia exemplar
Toda esta encenação caricata em torno das negociações do Orçamento entre PS e PSD revelou também um traço muito sintomático sobre o modo como a partidocracia confiscou e perverteu por completo o sentido da democracia em Portugal (embora, desgraçadamente, tal não se verifique apenas entre nós).
De facto, jornalistas, “fazedores de opinião” e, provavelmente, muitos dos cidadãos comuns acharam natural que, num sistema de democracia representativa e parlamentar, dois grupos incumbidos pelos respectivos directórios partidários se tenham reunido à porta fechada para combinarem ou negociarem não se sabe bem o quê. Dada a total opacidade de todo este processo, podemos legitimamente interrogar-nos sobre o que foi, de facto, negociado e se o que vai aparecer em letra impressa corresponde às combinações feitas nos bastidores.
(Parêntese: mas não foi também isto que ocorreu nas famigeradas negociações entre os sindicatos de professores e o Ministério da Educação, cujas actas não havia meio de aparecerem? Pois é. A oligarquização da democracia chega a todo o lado…)
E é espantoso que tanta gente considere isto aceitável numa democracia em que a transparência dos actos políticos, condição necessária para o seu escrutínio público, deveria ser a regra elementar.
Nada disso. Aliás, pudemos mesmo ouvir o ministro Silva Pereira, com aquela cara de pau que só ele sabe ostentar, dizer repetidamente que as negociações nunca devem ser feitas na praça pública.
Pois é aí mesmo que elas deveriam ser feitas, pois só assim poderíamos controlar o que está a ser congeminado e estaríamos em condições de avaliar criticamente um processo que nos vai afectar de maneira profunda. Isso, porém, equivaleria a minar um poder assente em desigualdades e assimetrias profundas.
O secretismo é apenas mais um meio de que os poderes fácticos se servem para privar o cidadão comum de ter uma palavra a dizer sobre o seu futuro.