Quantas vezes será necessário repetir isto?
O que está errado nesta análise? Uma das suas premissas de base: imaginar que o Partido Socialista, actualmente no poder, corresponde a uma «esquerda institucional». Contra esta ideia, há que soletrar devagarinho uma evidência:
O PS de Sócrates (ou de outro qualquer?) não é, nunca foi nem será um partido de esquerda.
Em grande medida, é a premissa da análise acima referida que está a paralisar os partidos à esquerda do PS e os sindicatos dominados pelo PCP. Todos partem do princípio de que, se o PS for afastado da governação em próximas eleições, o que vier a seguir será a catástrofe absoluta: um governo de direita do PSD sozinho ou em coligação com o CDS-PP.
Com base nesse pressuposto, o PCP, o Bloco de Esquerda e os sindicatos entendem que não convém agitar demasiado as águas da contestação social – fazer uma greve geral, sim, mas moderada e bem comportada -, de modo a não precipitar a queda do governo e a marcação de eleições antecipadas que poderiam colocar rapidamente a direita no poder.
Mas, que diabo:
Nós já temos um governo de direita. É o governo do PS, convertido, desde o início da «crise», em procurador dos interesses do grande capital financeiro e dos ditames de Angela Merkel. Um PS que, aliás, para o que diz respeito à redução dos direitos sociais e laborais, já está objectivamente coligado com o PSD.
Querem mais direita do que isto?
Se é esse o argumento para se conter ou moderar a contestação social, então os seus subscritores têm de puxar pela cabeça e procurar melhor, pois ele não resiste à mais elementar análise política.
Outro que pensa como nós
Rui Bebiano, um dos bloggers mais estimulantes deste país, assina aqui um texto que poderia ter sido escrito, linha a linha, por um de nós.
Para quando uma frente comum das pessoas lúcidas?
Revoltados e resignados?
Este texto de Daniel Oliveira é o exemplo perfeito da forma resignada como muitos apoiantes da greve geral de ontem aceitam que, hoje (e amanhã, e depois de amanhã e por aí fora), tudo continue na mesma. Nem sequer se interrogam sobre as estratégias para tornar a greve de 24 um ponto de partida para outra coisa.
E há, claro, os sectários do sindicalismo-que-temos. Esses vêm sempre recordar-nos que estas lutas são sempre muuuuuuuuuuuuuuuuuuuito prolongadas. Que é outra forma de resignação: quando chegares a velhinho, pode ser que tenhas finalmente uma vitória (três segundos antes de morreres).
E agora?
Hoje realizou-se uma greve geral. Ou seja: uma daquelas formas de luta que, pela sua amplitude, deveria ser muito mais do que um protesto, pensada numa perspectiva de continuidade e usada para fazer avançar, de forma eficaz e contundente, um caderno reivindicativo bem claro.
Para lá dos entusiasmos e das exaltações nos sítios previsíveis (aqui e aqui, por exemplo), restam as perguntas que deixámos no “post” anterior (por coincidência, aqui também alguém as coloca):
E agora?
E amanhã?
Amanhã os grevistas de hoje (todos nós) voltarão ao trabalho, para serem apascentados na ignomínia quotidiana em que se transformou boa parte das relações laborais.
Amanhã os grevistas de hoje estarão a deitar contas à vida, à espera do Janeiro que trará o Inverno e as reduções salariais.
Amanhã os grevistas de hoje vão ranger os dentes sem saberem o que fazer a seguir para se libertarem do buraco social onde foram enfiados.
Amanhã os grevistas de hoje vão regressar ao desespero manso de quem quer recusar a fatalidade do empobrecimento como horizonte, sem que, ao mesmo tempo, lhe consiga vislumbrar uma saída.
A menos que…
E depois de 24?
No dia 24, a maior parte dos membros da APEDE, pelo menos na sua direcção, irá fazer greve.
O motivo da nossa adesão prende-se com as mesmas razões que nos levaram a participar na manifestação do passado dia 6:
porque achamos que é necessário dar um sinal público do mal-estar, da insatisfação profunda e do sentimento de revolta perante uma política inteiramente orientada para espoliar os trabalhadores, à escala europeia, e para reforçar um mecanismo de distribuição de riqueza particularmente perverso: dos bolsos da classe média-baixa e dos mais carenciados para as contas off-shore da minoria composta pelos muito ricos. Pois a isto se resume as famosas medidas «de austeridade» que governos serventuários andam a impor por essa União Europeia fora.
Fazemos greve porque consideramos fundamental que os actuais detentores do poder percebam a dimensão do nosso descontentamento e da nossa oposição a esta política.
Fazemos greve porque queremos contribuir para a construção de um movimento unitário capaz de juntar trabalhadores de profissões muito diversas, precários e efectivos (estes bem mais fragilizados do que se pensa), num esforço de recusa e de resistência.
Fazemos greve, em suma, porque não aceitamos que nos apresentem a injustiça social como uma fatalidade tão incontornável como a chuva de Inverno.
Mas, dito isto,
compreendemos muito bem o desencanto daqueles que, partilhando a nossa indignação, justificam, no entanto, o intuito de não aderir à greve geral.
Compreendemos perfeitamente a relutância de muitos professores em fazer uma greve convocada por direcções sindicais que, num passado bem recente, por entre ternuras e beijinhos, correram a assinar acordos que mantiveram o essencial dos aspectos mais lesivos para a nossa profissão.
Compreendemos até a repugnância em participar numa greve apoiada por uma central sindical cujo dirigente máximo já veio a público manifestar a sua aquiescência para com o Orçamento-Ladrão e jurar, a pés juntos, que a greve não será feita contra o governo socratino.
E compreendemos também os que não aceitam uma greve geral limitada a um protesto – por imperioso que seja – realizado num único dia, sem ligação a um plano de luta coerente e capaz de oferecer aos trabalhadores um horizonte de resistência com um mínimo de acutilância.
E esta última é, para nós, a objecção maior que se pode colocar à greve do próximo dia 24.
As direcções dos sindicatos não parecem interessadas em prolongar o impacto e os efeitos da greve para lá da sua efectivação.
Poderíamos imaginar que este seria um momento de contagem de espingardas – tendo em conta o número muito significativo de sindicatos que anunciaram a sua adesão -, após o qual se lançariam acções mais determinadas, munidas de um caderno reivindicativo claro e concertado com federações sindicais de outros países europeus. Acções que passariam eventualmente pela repetição, com intervalos curtos, de outras greves gerais. Tantas quantas as necessárias para inverter estas políticas.
A articulação, tão urgente, das confederações sindicais europeias poderia apontar nesse sentido? Contudo, ao vermos que isto conduz apenas a isto, é caso para desesperar…
Portanto, a questão fundamental é esta:
e depois do dia 24?
Sonhar com um aviso no portão das escolas
PROIBIDA A ENTRADA DE CÃES
(ENFIM, DE ALGUNS)
E DE TODOS OS CIENTOLOGISTAS DA EDUCAÇÃO
O Paulo Guinote chama a atenção, neste “post”, para um problema a que já nos referimos por diversas vezes. Existe, no Ministério da Educação, um tipo de gente daninha que se mantém por lá independentemente da cor política de quem ocupa a cadeira ministerial. É essa gente, composta pelos grandes “expertos” em cientologia da Educação, a cavalo nos seus mestrados da Bosta (tradução portuguesa de Boston), que vai definindo, de facto, as políticas educativas deste país, nas quais os ministros põem a sua assinatura de cruz.
E essas políticas, todos sabemos em que consistem: de ciclo político em ciclo político, a qualidade do ensino público afunda-se um pouco mais. E, quando julgamos ter já batido no fundo, descobrimos que ainda há mais espaço para cavar a sepultura da Escola portuguesa.
As famigeradas Novas Oportunidades, de que o Paulo fala, são só uma vertente do abastardamento geral do sistema educativo em que estes senhores insistem. Mas uma vertente singularmente inquietante, pelo que revela de enorme mistificação política, servida por uma máquina muito bem oleada (e financiada). E ela está, com efeito, a transformar insidiosamente o sentido do ensino em Portugal.
Se os professores não começarem, desde já, a contrariar esta tendência para reduzir a Escola a uma fábrica de certificações em série, poderão um dia acordar transformados em formadores proletarizados numa linha de montagem de onde sairão, em massa (bruta), os futuros analfabetizados-com-certificado deste país.
Ainda sobre os movimentos independentes
Uma palavrinha última para aqueles que nos acusam de também termos baixado os braços, de não termos sido devidamente mobilizadores ou mais imaginativos, de pecarmos por amadorismo ou de não ousarmos constituir um sindicato alternativo (o rol de acusações é variado).
Para alguns, convém soletrar o que se vai ler a seguir:
Os membros dos movimentos independentes, e os da APEDE em particular, não são profissionais da luta ou da contestação. São professores sem redução no seu horário laboral, muitos deles com todos os encargos que isso significa, e que mesmo assim dedicaram bastantes horas do seu escasso tempo livre a tentar que a luta dos professores chegasse a bom porto.
Por isso, é mais do que compreensível que a existência destes movimentos ou, pelo menos, o tempo da sua maior mobilização, tenham um prazo relativamente curto. Porque isto, meus amigos, é muito cansativo.
Tendo todos nós consciência da importância de sermos cidadãos participativos, a começar pelo nosso local de trabalho, há no entanto que deixar bem claro o seguinte:
a nossa vocação maior não é a militância política – entendida aqui no seu sentido mais lato -, mas a actividade do ensino. É isso que gostamos de fazer, e é para isso que nos preparamos todos os dias: para sermos, no nosso quotidiano profissional, os melhores professores possível.
Portanto, não exijam mais do que aquilo que, humanamente, podemos, queremos e devemos fazer.
Se querem ser exigentes, sejam-no em relação àqueles que podem muito mais e que o não fazem.
Com um abraço para todos os nossos (milhares) de leitores.
Mobilização/desmobilização dos professores
Ainda em jeito de balanço, importa alargar um pouco mais o foco da análise, e perceber o que verdadeiramente sucedeu nestes últimos anos quanto à mobilização dos professores e o que levou ao estado actual de abatimento generalizado.
Antes de mais, há uma honestidade analítica que se impõe:
a mobilização dos professores, ao longo de 2008 e na transição de 2008 para 2009, foi um fenómeno efectivamente inédito e surpreendente.
Surpreendente porque partiu de uma classe profissional tradicionalmente avessa a acção radicais, sem ousadia na reivindicação dos seus direitos, mais propensa a obedecer aos ditames do Ministério do que a reclamar, com baixa auto-estima e escassa consciência política, e muito descrente das suas organizações ditas representativas. Nesse sentido, dir-se-ia que os professores condensam as características de resignação queixosa com que os portugueses costumam, em regra, reagir às injustiças sociais que sobre eles se abatem.
Em 2008, porém, pareceu que tudo poderia ser diferente. Já o dissemos antes: a mobilização dos professores foi, nessa altura, avassaladora e sem precedentes, apanhando toda a gente desprevenida, a começar pelos jornalistas habituados a ler a realidade social portuguesa pelas lunetas estreitas de certos lugares-comuns.
Como explicar então a transição, aparentemente tão abrupta, da mobilização para o conformismo do presente (talvez também mais aparente do que real)?
Para tentar responder a esta questão, é necessário determo-nos um pouco no que foi a natureza dessa mobilização dos professores.
Em nosso entender, ela resultou de factores cuja combinação foi, em grande medida, circunstancial e irrepetível:
– um conjunto de medidas altamente gravosas para a profissão docente, que os professores percepcionaram como atentatórias de alguns dos seus direitos mais elementares;
– um discurso ministerial e governamental de uma imensa arrogância, apostado em agredir e humilhar os professores na praça pública, e em voltar contra eles a opinião do comum dos portugueses que desconhece a realidade do sistema educativo nacional;
– a acumulação de anos de cansaço e de revolta surda de muitos docentes, exauridos pelas exigências de uma profissão com tanto de exaltante como de esgotante, e tendo atingido o limiar da tolerância para com um poder político que – independentemente dos partidos com assento na governação – nunca foi capaz de dar um sinal público de apreço pelo papel dos professores neste país.
A articulação de todos estes factores acabou por convergir numa figura particularmente odiada e especialmente odiosa – Maria de Lurdes Rodrigues – e numa das suas medidas mais opressivas e achincalhantes: o famigerado modelo de avaliação do desempenho docente.
Tivesse José Sócrates a clarividência de escolher para ministra da Educação do seu primeiro governo uma pessoa com outro “perfil” – uma Isabel Alçada – e é muito provável que a revolta dos professores não tivesse atingido os picos que alcançou. O comportamento detestável de Lurdes Rodrigues – em si mesmo um símbolo da pesporrência desse primeiro governo socratino – teve o condão de reforçar a convergência dos três factores acima assinalados. Às vezes há pessoas assim, que mudam a história (pelas piores razões).
Isto significa, porém, que a mobilização dos professores teve uma base bem mais frágil do que gostamos de admitir. O sentimento de indignação e de dignidade ferida que levou muita gente para as manifestações massivas de 8 de Março e de 8 de Novembro era demasiado volátil e episódico para perdurar por muito tempo – ainda que baseado em razões bem mais fundas e estruturais. Bastava uma táctica de abertura e umas manobras divisionistas para que uma parte importante das tropas debandasse.
A burrice política do governo tardou a perceber isso. Mas quando, finalmente, o entendeu – extraindo da cartola o modelo-“simplex” de avaliação -, um grande número de professores desertou do combate e depressa regressou àquilo que tem sido a raiz de todas as nossas fraquezas: as estratégias e os cálculos individuais, a lógica do «salve-se quem puder, a começar por mim próprio».
É claro que os sindicatos também ajudaram (e de que maneira) a essa deserção, adoptando uma atitude ambígua e timorata na “grande forma de luta” que advogaram – a não entrega dos objectivos individuais – e dando, desde logo, o sinal de que o modelo de avaliação era para ser, afinal, cumprido no seu desfecho: a entrega da auto-avaliação. Como referimos aqui, os dirigentes dos sindicatos têm uma quota importante na responsabilidade pela desmobilização dos professores. Eles desejaram-na e estimularam-na.
A curta duração é o horizonte temporal dos grandes movimentos colectivos. A maioria das pessoas não é naturalmente combativa. Prefere o conforto e a segurança, mesmo num contexto de opressão, aos riscos que o exercício da liberdade e da desobediência sempre acarretam. O velho Freud explicou que isto tem um preço. Um preço chamado neurose – e daí tantos professores a sofrer de depressão e a recorrer ao psiquiatra.
A combatividade que a classe docente demonstrou e a sua capacidade de mobilização não estavam, pois, destinadas a prolongar-se no tempo. Por isso, teria sido fundamental que os mais bem colocados para liderar esse movimento utilizassem a sua força no sentido de ir o mais longe possível e de encostar rapidamente o governo à parede. Os sindicatos preferiram não o fazer.
E não o fizeram porque a sua forma temporal não coincide com a dos trabalhadores que deveriam representar. O tempo dos trabalhadores, e dos professores em particular, é o tempo da urgência – explicável pela gravidade dos problemas que os afectam -, o tempo da revolta de grande intensidade mas de curto fôlego. O tempo dos sindicatos, em contrapartida, é o tempo lento, o tempo mastigado das rondas negociais no qual vão justificando a sua existência. Dentro desta lógica, as lutas de rua e nos locais de trabalho são apenas o complemento ou a adenda da coreografia negocial. E os «colectivos» de que os dirigentes sindicais tanto falam não são mais do que um interruptor para ser accionado ou desligado quando lhes convém.
E isto, meus caros, também explica muito da desmobilização que hoje constatamos e que tanto nos perturba.
A luta dos professores e os movimentos independentes: um balanço (4)
Por diversas vezes dissemos que não estamos contra os sindicatos em si, mas contra um certo sindicalismo-que-temos e, sobretudo, contra todas as decisões dos dirigentes sindicais que, em nosso entender, prejudicam gravemente os interesses dos professores (ou dos trabalhadores em geral).
Para muito fanático e muito sectário, esta nossa posição é, no entanto, um pecado capital. As suas cabecinhas já nos reservaram, há muito, lugar nos gulags imaginários que as habitam.
Contudo, se fizermos a pequena história destes três últimos anos, verificamos que foram mais as vezes que os movimentos independentes quiseram fazer a ponte com os sindicatos do que o contrário.
Até à manifestação de 8 de Março de 2008, os movimentos adoptaram uma postura expectante em relação às organizações sindicais. A primeira ruptura deu-se quando estas assinaram o famigerado «Memorando de entendimento» com o Ministério, um texto feito à medida para desmobilizar os professores e os entregar aos ditames ministeriais, em troca da promessa de reabertura de umas negociações atiradas para as calendas – essas rondas negociais que os dirigentes sindicais tanto apreciam e das quais nada de verdadeiramente positivo costuma resultar.
Ao contrário dos cálculos “sindicalistas”, o início do ano lectivo de 2008-2009 foi encontrar os professores com a mesma revolta e a mesma determinação que os tinha levado à manifestação de Março e a toda a agitação que a precedeu – de onde, aliás, saíram os movimentos independentes. E logo em Setembro, numa reunião da APEDE aberta a todos os professores, foi decidido concretizar uma ideia que, na altura, andava a circular pela blogosfera docente e por muitas mensagens de e-mail: realizar uma manifestação no dia 15 de Novembro.
Não tenhamos dúvidas. Nessa fase da luta dos professores, semelhante decisão veio alterar totalmente o cenário que a equipa ministerial e os sindicatos tinham desenhado para esse ano lectivo. Estes últimos sentiram-se ultrapassados e perceberam a necessidade (na óptica deles) de controlar uma onda que estava a crescer, onda ameaçadora para o monopólio que sempre gostaram de exercer sobre os movimentos laborais.
Ensaiaram então várias tácticas, daquelas aprendidas nos manuais estalinistas. Em primeiro lugar, apressaram-se a convocar outra manifestação para uma semana antes da que já estava convocada, imaginando que assim esvaziariam facilmente a iniciativa do 15 de Novembro. O que sucedeu foi exactamente o contrário: um número muito grande de professores ficou indignado perante o que só podia surgir como um truque de baixa política, e reforçou a intenção de participar na manifestação do dia 15 em detrimento da que os sindicatos haviam convocado.
Em seguida, os apaniguados do sindicalismo-que-temos recorreram a uma panóplia variada de golpes sujos. Muitos se recordarão de que, por essa altura, as caixas de comentários dos blogues se encheram do lixo mais reles e mais tóxico: insinuações de que os movimentos estavam secretamente ligados à 5 de Outubro – insinuações, de resto, proferidas em público por gente com responsabilidade nas direcções dos sindicatos -, tentativas de lançar lama sobre a reputação ou o bom nome de certos membros dos movimentos que tinham estado ligados à convocatória da manifestação do dia 15, etc. Tudo foi tentado. Mas em vão.
Por fim, os dirigentes sindicais não tiveram outro remédio senão reconhecer que a onda de apoio ao 15 de Novembro era imparável e que se corria o sério risco de a manifestação sindical se revelar um enorme fiasco. Mudaram então de táctica e deram um passo inédito: encetaram um processo de negociação com os representantes dos movimentos independentes, de modo a assegurar o sucesso da manifestação convocada para o 8 de Novembro.
E esta foi, de facto, um tremendo sucesso – provavelmente a maior manifestação de rua dos últimos dez anos. Mas manda a verdade que se acrescente um detalhe: foi um sucesso porque, numa certa noite e num certo liceu de Lisboa, os dirigentes de uma certa Federação de sindicatos de professores chegaram a acordo com os representantes dos movimentos. E a verdade também obriga a que se acrescente o seguinte: nesse acordo, a cedência veio quase toda dos movimentos, que não dos sindicatos – desmentindo, assim, quem nos acusa de anti-sindicalismo militante.
Nos meses que se seguiram, foram várias as ocasiões em que os movimentos se sentaram à mesa com as direcções dos sindicatos que então integravam a Plataforma Sindical – um desses encontros contando mesmo com a presença de Mário Nogueira. Em todas elas, os movimentos assumiram uma postura dialogante, embora sem nunca abdicarem da atitude crítica naquilo em que ela se impunha. E o facto é este: apesar de se encontrarem connosco, nunca as direcções sindicais deram mostras de abertura às nossas propostas ou de aceitarem desenvolver iniciativas conjuntas com os movimentos, apesar de estes reiterarem sugestões nesse sentido. Iniciativas que, note-se, visavam reaquecer uma luta que, já nessa altura, os sindicatos pretendiam esfriar – à espera da mudança de ciclo político nas eleições que se avizinhavam, mudança que os iria fazer sentar novamente na tão desejada «mesa de negociações».
Deste modo, o “diálogo” entre movimentos e sindicatos ocorreu naquele mundo das aparências de que o velho Platão falava. Nada que nos tivesse surpreendido, pois sempre fomos para essas reuniões com a fasquia das expectativas situada muito baixo. Digamos que elas serviram para confirmarmos um modus operandi. Podem acusar-nos de erros estratégicos, mas não de ingenuidade…
A verdade é que a lógica dos sindicatos saiu triunfante de todo este processo. Conseguiram desmobilizar os professores, conseguiram arrefecer os ânimos, conseguiram que os movimentos fossem perdendo a sua base de apoio, conseguiram subordinar uma luta laboral a timings político-partidários que tudo apostavam nas eleições.
O que veio a seguir, ao longo de 2010, e cuja análise já foi amplamente feita, só veio aprofundar as nossas piores impressões. Hoje sabemos todos o resultado paupérrimo – digamos claramente: a traição misturada com enormíssima incompetência – que saiu do tal regresso às negociações.
Aceitando um acordo que, apesar de suprimir a divisão formal na carreira dos professores, manteve estrangulamentos graves na sua progressão, não tocou no modelo despótico de administração escolar e preservou as piores aberrações da avaliação do desempenho, os sindicatos traíram, uma vez mais, as expectativas (ainda que baixas) neles depositadas.
Pior: ao aceitarem assinar um acordo que, sabemo-lo agora, não tinha sequer garantias de ser cumprido (mesmo com todas as suas insuficiências), os sindicatos comprometeram, de forma quase irremediável, a recuperação da dignidade profissional dos professores para os tempos mais próximos.
E a conclusão só pode ser uma:
o terrível saldo de 2010 torna ainda mais lamentável o facto de os movimentos independentes não terem conseguido a força necessária para se constituírem numa alternativa efectiva aos sindicatos.
A luta dos professores e os movimentos independentes: um balanço (3)
Quando a APEDE se constituiu como associação, a ideia que lhe presidiu era criar um espaço organizativo que pudesse federar todos os professores que não se reconheciam na prática dos sindicatos e que estivessem, ainda assim, dispostos a ter uma participação cívica e uma intervenção reivindicativa na luta pelos seus direitos profissionais e no combate por uma Escola Pública democrática e de qualidade.
O projecto consistia, pois, em unir o maior número possível de docentes empenhados em transformar as relações de poder no seio do nosso sistema de ensino. No momento em que lançámos esta ideia, mal nos apercebemos de que havia já outros movimentos no terreno. Alguns, como o «Defende a Profissão» ou «Os Professores Revoltados», estiveram na génese da APEDE. Outros, porém, preferiram manter a sua autonomia.
Seja como for, nunca foi possível realizar o desiderato que viu nascer a APEDE. Não se conseguiu criar – como agora se diz – «massa crítica».
E essa foi outra fragilidade dos movimentos – não obstante ser a contrapartida de uma afirmação de independência enraizada.
Não tendo «massa crítica», os movimentos acabaram por exercer, acima de tudo, um papel de pressão sobre as organizações sindicais, gerando-se aí uma relação acidentada cuja análise, por si só, terá de ocupar um único “post”.
Entretanto, os movimentos contribuíram também para que a comunicação social tenha estado, durante o auge da revolta dos professores, mais atenta aos problemas das escolas e à justeza do combate que estava a ser travado. Nessa fase, diversos jornalistas perceberam que, se queriam obter um retrato mais nítido do que se passava no ensino em Portugal, podiam recorrer aos membros dos movimentos, sabendo que deles não iriam ouvir os habituais e estafados estribilhos de profissionais da “reivindicação” que, na sua maioria, estão há muito afastados das salas de aula e do pulsar das escolas.
O mesmo aconteceu, aliás, com vários deputados da Assembleia da República pertencentes a partidos da oposição. Fosse por solidariedade genuína ou por conveniência táctica, o facto é que os movimentos independentes foram, variadas vezes, recebidos pelos grupos parlamentares desses partidos e ouvidos na Comissão Parlamentar para os Assuntos Educativos. A credibilidade que, nessa altura, lhes foi reconhecida provinha, tão-só, de os movimentos serem compostos por professores que vivem, quotidianamente, a experiência do contacto directo com a realidade escolar. E alguns deputados confessaram terem aprendido alguma coisa connosco. Se daí tiraram as devidas ilações, essa já é outra história…
Por conseguinte, e a par de diversas iniciativas exteriores ao quadro tradicional – pensemos, por exemplo, nos Encontros de Leiria que juntaram professores de vários cantos do país – e de outras que tentaram impulsionar a luta dos professores em direcções mais determinadas (como a manifestação de 15 de Novembro ou a concentração junto ao Palácio de Belém), os movimentos independentes cumpriram um papel que mais ninguém poderia ter desempenhado.
Fizeram-no com dignidade, com sacrifício pessoal, com muitas horas roubadas ao sono e ao conforto.
Fizeram-no com o preço de terem de tropeçar nalguns canalhas de permeio, mas também com a alegria de terem conhecido muita gente boa e generosa.
Fizeram-no, em suma, contra esta coisa de nos conformarmos em viver uma “vidinha”. Essa “vidinha” que, como dizia o Alexandre O’Neill, mata qualquer poesia.
A luta dos professores e os movimentos independentes: um balanço (2)
O aparecimento dos movimentos independentes de professores na cena social (e política) portuguesa não tem de ser magnificado pela lupa dos nossos exageros, das nossas ilusões ou do nosso narcisismo.
Mas também não tem de ser menosprezado como um epifenómeno ou uma breve aberração dentro da ordem sociopolítica portuguesa, que “manda” que o espaço da cidadania seja totalmente colonizado pelos partidos, pelos sindicatos, pelas ordens profissionais e por pouco mais.
Perante as queixas hipócritas sobre a escassez de cidadania activa e a auto-satisfação de quem se julga detentor do monopólio da intervenção cívica, a irrupção súbita dos movimentos veio baralhar muitas ideias-feitas, obrigando os protagonistas habituais a adaptarem-se a uma realidade que não constava dos manuais.
A surpresa foi generalizada e, justo é reconhecê-lo, apanhou desprevenidos os próprios actores dos movimentos independentes.
Surpresa, antes de mais, face à rapidez fulminante com que conseguiram mobilizar uma quantidade significativa, e geograficamente dispersa, de professores. Duas ou três reuniões preparatórias bastaram para que, a 23 de Fevereiro de 2008, a APEDE nascesse de uma reunião numa escola de Leiria que juntou perto de 500 professores das mais diversas regiões do país. Nesse mesmo dia, à tarde, um outro movimento reuniu, na mesma cidade, cerca de 700 pessoas igualmente ligadas ao ensino. Havia, de facto, o desejo de uma coisa nova, genuína, não controlada pelas organizações tradicionais e que pudesse representar uma alternativa ao modus operandi destas.
Surpresa também pela pluralidade. De repente, parecia que os movimentos se estavam a multiplicar como cogumelos, quase sempre sem saberem da existência uns dos outros.
Alguma comunicação social esqueceu, por momentos, os seus piores reflexos condicionados e conseguiu intuir a existência de um fenómeno novo. Porque o era realmente.
Talvez um dia se faça o case-study desta realidade, e se perceba o papel fundamental que a nova paisagam comunicacional desempenhou neste tipo novo de mobilização: a Internet, com todos os seus dispositivos de interacção – o correio electrónico, a blogosfera – ela mesma um movimento independente -, os espaços virtuais de discussão, de intercâmbio de ideias e de informações, mas também os telemóveis com os seus sms. Os professores tiveram (e têm) ao seu dispor toda uma panóplia de novos meios de organização e de mobilização que possibilitam a criação de redes interactivas à margem das pesadas estruturas organizativas, as que vêm de um mundo pré-digital e que só a custo convivem com ele.
Todavia, foi também por aí que as coisas começaram a falhar. O que fez a força momentânea e a espontaneidade dos movimentos – o facto de usarem as novas teconologias para se auto-organizarem – originou igualmente uma parte das suas limitações. Os movimentos de professores viram-se confrontados com uma contradição fundamental (que, aliás, afecta outras esferas dos processos de luta): existe uma discrepância de fundo entre o carácter libertário ou anárquico da blogosfera, e do ciberespaço em geral, e as exigências que se colocam quando se passa para o mundo material, aquele onde pessoas de carne e osso se encontram. Aí as formas de luta perdem, necessariamente, o cunho disperso e centrífugo da interacção no ciberespaço, e os constrangimentos para o que se possa fazer são muito maiores.
Os movimentos quiseram, e bem, transitar do teclado de um computador para a intervenção no espaço público e ao nível das escolas. Os seus meios, porém, eram aí muito mais limitados, até pela própria natureza que os caracterizava e pelas auto-limitações que, desde o início, se impuseram, não pretendendo substituir-se aos sindicatos ou converter-se num novo sindicato – convictos de que, se o fizessem, estariam apenas a reproduzir uma prática por eles contestada.
Esse foi o seu mérito.
Mas foi também a raiz do seu relativo fracasso.
Um tema para próximos “posts”.
A luta dos professores e os movimentos independentes: um balanço (1)
Agora, quando aqui e ali surgem balanços críticos sobre a luta dos professores, o impacto dos movimentos independentes e análises sobre a situação actual, é chegado o momento de também nós procedermos a uma leitura do que aconteceu no passado recente, condição para podermos encarar o que aí vem e termos alguma intervenção nisso.
Muito se tem escrito sobre a derrota objectiva dos professores, a amargura e desilusão que se apoderou de muitos, o esvaziamento de um processo no qual tantas expectativas e tantos esforços foram investidos.
O que não tem sido, porém, sublinhado é o facto de os anos de 2008 e 2009 terem introduzido uma novidade exaltante no panorama cinzento da profissão docente e do sistema educativo em Portugal. A verdade é muito simples e tem de ser lembrada:
não há memória, nos últimos 20 anos desta 2.ª República portuguesa, de que um grupo socioprofissional inteiro se tenha mobilizado, de forma tão maciça e significativa, para lutar pelos seus direitos e para procurar derrubar um conjunto de leis iníquas.
Mais:
não há sequer registo, nos restantes países europeus, de que uma classe profissional tenha conseguido juntar, em duas manifestações de rua, 100 mil a 120 mil pessoas.
E, entre nós, é também inédito que um punhado de movimentos independentes, sem quaisquer meios financeiros ou estruturas logísticas dignas desse nome, tenha logrado a proeza de realizar uma manifestação com cerca de 20 mil professores, apenas uma semana após uma outra que havia reunido o número de 120 mil.
E, contudo, podemos dizer que esses são os aspectos meramente espectaculares e exteriores do que foi o combate dos professores nesses dois anos «de brasa». Nada mais do que efeitos de superfície – por importantes que possam ter sido no plano simbólico.
Porque, se formos ao fundo das nossas memórias recentes, encontramos bem mais do que isso.
Encontramos a experiência de muitos e muitos professores que, por esse país fora – sobretudo no norte e no centro -, se puseram a redescobrir a sua dignidade, a repensar as condições da sua profissão e o próprio sentido de ser professor.
Encontramos o facto de ter havido pessoas dispostas a reservar horas ou dias inteiros do seu (cada vez mais escasso) período de lazer, fazendo por vezes centenas de quilómetros, “só” para se reunirem com colegas a fim de discutir, não apenas as formas de luta a desenvolver, mas também o conteúdo a dar à sua profissão e o futuro da Escola Pública.
Isso ocorreu, não nas manifestações mais participadas, mas em muitas reuniões de escola, ou em reuniões de professores trabalhando na mesma zona, ou ainda em encontros de carácter nacional – iniciativas quase sempre suscitadas pelos movimentos independentes, ou simplesmente por professores que se auto-organizavam e tomavam a dianteira dos processos sem esperar que um suposto dirigente “iluminado” lhes dissesse o que fazer.
Para muitos, foi como que um regresso aos tempos empolgantes de 1974 e 75, a reinvenção de uma outra democracia, protagonizada por cidadãos inconformados com a sua redução ao estatuto de meros eleitores passivos.
Que depois tudo isto tenha sido varrido, para acabar nesta «apagada e vil tristeza» em que agora vegetamos, não retira um átomo à intensidade da experiência que todos nós vivemos.
Ainda que a cintilação tenha sido breve, podemos dizer que, enquanto durou, fomos cidadãos de corpo inteiro.
E isso nenhum oportunista,
nenhum sabujo,
nenhum pantomineiro,
nenhum turiferário ao serviço do poder,
nos pode roubar.
Um défice de cidadania e de lutas sociais?
Alguém dizia, há dias, que o défice preocupante em Portugal não é exactamente o do Orçamento de Estado, mas o das lutas sociais e da mobilização colectiva dos trabalhadores no combate pelos seus direitos. O que nos conduz à velha questão de tentar perceber por que, perante este ataque sem precedentes a direitos longa e duramente conquistados, os trabalhadores portugueses permanecem tolhidos na inércia e em meras estratégias individuais de acomodação.
Respostas, para isso, não faltam.
Temos a resposta sociologista e historicista, segundo a qual os portugueses foram acarneirados por 50 anos de ditadura fascisto-salazarista. E até há quem recue aos tempos da Inquisição para encontrar as raízes culturais ou sociais deste aparente caldo nacional de medo, de culto do respeitinho, à mistura com chico-espertismo e marialvismo inconsequente (do tipo «é só garganta»).
Temos depois a vulgata identitária, com o seu cortejo de generalizações empenhadas em definir o «ser português»: os «brandos costumes», a natureza pacífica e cordata, pouco dada a excessos e a contestações, etc., etc.
E um estudo recente, baseado num inquérito efectuado de norte a sul do país sobre o modo como os portugueses se vêem a si próprios e aos outros, permite concluir que eles se atribuem, predominantemente, traços como «sonhador», «sentimental», «pacífico», «adaptável», «modesto», «serviçal». Não são os outros que nos vêem assim, nem são as elites dominantes que, especulando acerca do «carácter nacional», projectam esses traços sobre os seus conterrâneos. Não, os próprios portugueses gostam de se imaginar desse modo.
É claro que, de vez em quando, este povo consegue surpreender os incautos e os teóricos do conformismo:
E, nessas alturas, acontecem coisas estranhas e imprevisíveis:
E ainda há quem chame a isto um partido de esquerda
É preciso coragem! (E lata, e falta de vergonha…)
O papão insurreccional explicado às crianças
Dupont e Dupond
reunidos no programa de Mário Crespo, explicam que as formas de constestação, como a greve geral do dia 24 ou as manifestações de rua, desde que devidamente enquadradas – por partidos políticos ou sindicatos -, não fazem mal nenhum. O pessoal faz greve (de um só dia, como deve ser), deita cá para fora as suas mágoas e os seus protestos, e no dia seguinte regressa tudo à normalidade (exploração desenfreada, perda de direitos, reduções salariais, desemprego). Devidamente disciplinada e bem arrumadinha pelas organizações que a «enquadram», essa contestação é boa, dizem Dupont e Dupond, porque não serve para nada (ou para muito pouco).
O pior, acrescentam Dupont e Dupond (com preocupação no semblante), é quando esses protestos surgem desenquadrados, quando tudo começa por um rastilho que rapidamente se incendeia, quando não há organização para apascentar os contestatários e a constestação se transforma, de facto, numa luta de contornos imprevisíveis.
Dupont e Dupond não o explicitam, mas é por aí que se inicia muito boa revolução. Olhem, por exemplo, esta, cujo aniversário se celebra daqui a sete anos:
Tudo começou, em Fevereiro, com umas operárias grevistas que, à margem de qualquer organização formal, arrastaram consigo os operários…
… que arrastaram com eles os soldados…
… e, ao fim de poucos dias:
Perguntinha pertinente
Já alguém disse quanto é que isto vai custar aos bolsos dos contribuintes portugueses, em especial aos mais violentados pela política de “austeridade»?