Cenários da partidocracia portuguesa – 3

E chegamos, finalmente, à nossa esquerda – a que está representada no parlamento e que, portanto, possui peso eleitoral e influência social.

Importa dizer que o panorama não é propriamente exaltante. Excluído o PS, que só por equívoco pode ser situado na ala esquerda do nosso espectro político, sobra-nos o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda (não, não nos estamos a esquecer dessa pitoresca inexistência que dá pelo nome de Os Verdes).

À partida, parece fácil escarnecer do PCP. Com a sua direcção estalinizada, com os seus inconcebíveis editoriais do «Avante!» entoando loas ao regime dos irmãos Castro, à Coreia do Norte e a esse baluarte do” internacionalismo proletário” que é a China, com um discurso carregado dos mais estafados chavões ideológicos, com a sua teimosia em se agarrar a um modelo político e a uma memória histórica – muito selectiva e cheia de amnésias – que a história descredibilizou da forma mais cruel, dir-se-á que o PCP não passa de um anacronismo incongruente, uma espécie de museu vivo onde se exibe, perante a perplexidade dos cientistas políticos, uma parte do século XX, povoada de zombies a quem ninguém deu a notícia da sua morte. É verdade que os dirigentes do PCP muito fazem pela justeza desta imagem, como se viu recentemente pela vergonhosa tomada de posição relativa à entrega do Nobel da Paz a Liu Xiabo, sintoma da cegueira patética de quem insiste em ver na China actual um sistema comunista.

E, no entanto…

… o PCP não deixa de ter um património de luta e de resistência fundamental na história portuguesa do século XX, e ainda é, na nossa sociedade, o porta-voz de muitos cuja voz é silenciada, por vezes quase o único representante dos explorados deste país – aquele que lembra, justamente, que o conceito de exploração continua a fazer sentido.

O aparente «anacronismo» do PCP explica-se, em grande medida, pelo facto de Portugal ser o país da União Europeia que apresenta as maiores desigualdades sociais. E, enquanto estivermos nessa situação, é previsível que o PCP não desapareça do mapa político-partidário, ainda que a sua influência não cesse de decrescer – a um ritmo muito mais lento do que aconteceu aos outros partidos comunistas da Europa ocidental.

De resto, é bom não esquecer a enorme influência que, para o bem e para o mal, o PCP continua a ter no movimento sindical – colocando este muitas vezes a reboque de uma agenda partidária específica. Isso mostra que, pelo menos num futuro próximo, o PCP é uma força que não pode ser negligenciada por todos os eventuais participantes no movimento social que urge desencadear.

E o Bloco de Esquerda? Bom, dir-se-ia que o BE tem vindo a perder, nestes últimos tempos, uma parte significativa da acutilância e da novidade que o caracterizou inicialmente. Para os mais famintos de radicalismo, o BE “aburguesou-se” inapelavelmente, deixando-se absorver em demasia pelo establishment partidário e parlamentar. É estranho, e talvez sintomático, que o BE tenha, por estes dias, um discurso relativamente vago e vazio no tocante às alternativas que se colocam ao modelo de «austeridade» imposto pelo Governo e por Bruxelas, quando, no interior do Bloco, há tanta gente credenciada, e com boas ideias, para expor essas alternativas e, sobretudo, para mobilizar os cidadãos em torno da luta por elas.

É sabido que o BE possui, internamente, diversas tendências e correntes dificilmente compatíveis entre si. Ele acolhe os restos de muito esquerdismo que, por enquanto, se tem mantido silencioso (ou quase) e que a direcção de Francisco Louçã tem conseguido conter. Apesar do lado por vezes infantilóide desse esquerdismo, e do facto de ele permanecer tão agarrado como o PCP a modelos históricos insuportáveis, não deixa de ser verdade que essas tendências mais “radicais” constituem uma espécie de reserva ou de consciência crítica para espicaçar a inclinação para o acomodamento por parte da direcção do Bloco. Ainda assim, o aggiornamento operado por essa direcção permitiria, se fosse plenamente assumido, criar um espaço político para uma corrente que, verdadeiramente, nunca existiu neste país. Referimo-nos a uma certa social-democracia de teor escandinavo, a um pensamento político-económico centrado numa recuperação das ideias keynesianas, pensamento que sabemos ter uma larga representação no BE mas que nunca surgiu, claramente, à luz do dia – talvez porque o BE insista em não cortar amarras com “trotskismos” de outras eras. 

Seja como for, “trotskista” ou “social-democrata”, o BE parece apostado, como os restantes partidos com assento parlamentar, em jogar tudo nos mecanismos eleitorais, renunciando a mobilizar os cidadãos para os combates que deveriam estar já a ser desenvolvidos no terreno.

E esta cegueira eleitoralóide, comum aos dois partidos de esquerda, não nos vai levar muito longe…

 

3 thoughts on “Cenários da partidocracia portuguesa – 3

  1. Subscrevo.
    Deixo-vos, a propósito um texto publicado na Revista “Politica Operária”, de Janeiro de 2008.

    Quando já se fazem contas a pensar nas eleições que hão-de vir, vêm a propósito estas opiniões sobre o assunto, de conhecidos activistas do passado.
    Observava Friedrich Engels no seu tempo que a república democrática, ao contrário dos Estados da Antiguidade e da Idade Média, “não reconhece oficialmente as diferenças de fortuna. A riqueza exerce o seu poder de forma indirecta, mas ainda mais segura. Por um lado, sob a forma da corrupção directa dos funcionários, de que a América é um exemplo clássico; por outro lado, sob a forma da aliança entre o governo e a Bolsa (…). E por fim, a classe possuidora reina directamente por meio do sufrágio universal. Enquanto a classe oprimida, ou seja, neste caso, o proletariado, não estiver suficiente amadurecido para se libertar a si próprio, considerará na sua maioria o regime social existente como o único possível e formará, em termos políticos, a retaguarda da classe capitalista”.
    Por sua vez, Vladimir Lenine escrevia em 1918: “Poderemos acreditar que o sábio Kautsky nunca tenha ouvido dizer que, quanto mais poderosamente a democracia for desenvolvida, mais submetido estará o parlamento à Bolsa e aos banqueiros? Isto não significa que não devamos utilizar o parlamento burguês (…) Mas significa que só um liberal pode esquecer – é o caso de Kautsky – o carácter limitado e relativo do parlamentarismo, do ponto de vista histórico. No Estado burguês mais democrático, as massas oprimidas chocam-se constantemente com a contradição gritante entre a igualdade nominal proclamada pela ‘democracia’ dos capitalistas, e os milhares de restrições e subterfúgios reais, que fazem dos proletários escravos assalariados. Esta contradição, precisamente, abre os olhos das massas sobre a podridão, a falsidade, a hipocrisia do capitalismo. É justamente esta contradição que os agitadores e os propagandistas do socialismo denunciam sem cessar perante as massas, a fim de as preparar para a revolução”.

  2. Quase perfeito. Resta acrescentar que o “Bloco” é, desde sempre, o depositário dos esquemas intelectuais e dos modelos éticos mais rígidos e dogmáticos.

Deixe um comentário