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Memórias de Abril: nascimento da «gestão democrática das escolas» ou um exemplo de como nem tudo foram «cravos» em 1974

Posted in Educação,Para recordar (sempre) por APEDE em 27/04/2011

Na continuação da divulgação de documentos, escritos e visuais, produzidos no período de 1974-76, publicamos hoje um documento que é quase um inédito.

Dizemos «quase» porque, contrariamente a outros documentos que expusemos em “posts” anteriores, este não é um exemplar único. Mas é provável que poucos arquivos o contenham (talvez este, e mesmo assim não é seguro).

Trata-se de um documento que, à primeira vista, ilustra a transição da direcção unipessoal de uma  escola para a sua gestão colegial e democrática. Infelizmente, trata-se também de um exemplo de como, no período revolucionário, se cometeram abusos e injustiças com desfecho trágico. Nem tudo foram «cravos» no pós-25 de Abril.

O documento em questão traz a assinatura de Manuel Calvet de Magalhães, um homem hoje esquecido mas que, em 1973, era considerado um dos melhores pedagogos de sempre em Portugal.

Quando se deu o 25 de Abril, Calvet de Magalhães era director da Escola Preparatória Francisco de Arruda.

Situada no bairro da Ajuda, em Lisboa, numa estranha intersecção social a paredes meias com habitações de classe média, com palacetes de altíssima burguesia e com bairros de lata, a Francisco de Arruda era um verdadeiro milagre de experimentalismo pedagógico. Escola-piloto lhe chamaram, e com razão. 

Escola feita à imagem do ideal que Calvet de Magalhães traçara para o ensino em Portugal, nela se ensaiavam novos tipos de relacionamento entre professores e educandos, onde a exigência se casava com a estimulação do espírito crítico e da criatividade dos alunos.

Uma escola que queria proporcionar aos alunos muito mais do que o simples formato das aulas – e por isso os Sábados na Francisco de Arruda eram dedicados à projecção de filmes para toda a comunidade estudantil, precedidos de debates com figuras públicas (escritores, jornalistas, artistas, etc.).

Uma escola equipada com o que, nos anos 60 e no início de 70, havia de melhor em laboratórios, meios audiovisuais e equipamentos desportivos.

Uma escola polvilhada dos mais pequenos detalhes para pôr as crianças e os adolescentes a pensar – e por isso havia frases e meditações de grandes pensadores pintadas nos muros ou em azulejos, e espalhadas pelos mais diversos sítios, desde os frisos dos pátios, do refeitório, até aos urinóis dos alunos (e não, aí não se encontrava o tipo de frases que costumam “decorar” esses lugares…).

Uma escola que era, física e esteticamente, um espaço deslumbrante para os alunos, pontuado por pequenos pormenores de beleza que o próprio Calvet de Magalhães, artista plástico, se esforçara por disseminar. 

E toda esta utopia materializara-se, note-se bem, não numa escola privada para meninos ricos, mas numa escola pública, frequentada por indivíduos dos mais diversos estratos sociais.

A Escola Preparatória Francisco de Arruda, dirigida por Calvet de Magalhães, era a concretização do que poderia ter sido (do que deveria ter sido) a escola pública, democrática e de excelência, do pós-25 de Abril.

E, em 1974, aconteceu a revolução. Com ela, Calvet de Magalhães viu-se obrigado a partilhar o poder na Francisco de Arruda. O documento que se segue mostra o início desse processo. E deixa entrever alguns aspectos desagradáveis (e depois profundamente trágicos) que lhe estiveram associados.

Trata-se de um documento que Calvet de Magalhães se sentiu forçado a enviar aos encarregados de educação. Não traz data, mas deverá ter sido escrito em meados de Julho de 74:

Pelas entrelinhas, percebe-se que o processo de transformação do modelo de direcção da escola não estava a decorrer ao gosto de Calvet de Magalhães. Na verdade, sabe-se hoje que ele estava a ser objecto de todo o tipo de vexames e de perseguições internas movidos por grupos de professores ansiosos por fazer sentir ao “senhor reitor” todo o peso da nova ordem “revolucionária”. Há, aliás, um detalhe pungente neste documento: o parágrafo em que Calvet de Magalhães se sente na necessidade de fazer prova do seu passado de confronto com a ditadura. Uma necessidade que decorria do clima violento de saneamentos selvagens que se praticaram em 1974-75, os quais, se politicamente justificados em muitos casos, foram de uma tremenda injustiça em muitos outros. Calvet de Magalhães teve de puxar dos seus galões de apoiante de opositores à ditadura para evitar o seu próprio saneamento de uma escola que ele contruíra e que tanto amara.

Vem então o epílogo desta história. Um epílogo trágico, brutal e chocante – para todos os que conheceram e estimaram Calvet de Magalhães.

Cada vez mais pressionado por alguns dos seus colegas, que lhe tinham “batido pala” e que agora se descobriam muito “progressistas”, acusado de gestão financeira danosa – uma acusação que depois se soube ser injusta -, Manuel Calvet de Magalhães, numa noite de Agosto de 1974, entrou na Escola Preparatória Francisco de Arruda, nesse espaço onde tanto havia de seu, nesse espaço onde ele sonhara a escola ideal para todos.

Entrou na Francisco de Arruda para se suicidar.

Em Agosto de 1974, Calvet de Magalhães, que ontem e hoje alguns recordam como um dos maiores pedagogos portugueses do século XX, matou-se numa Escola com a qual construíra uma relação simbiótica.

E este exemplo, embora isolado, mostra que nem tudo foram «cravos» há 37 anos atrás.

E mostra também, para mal dos nossos “pecados”, que a génese dos processos de democratização pode ter conhecido, em momentos cruciais, injustiças profundas que jamais serão redimidas.

Porque nem tudo é fácil. Nem tudo é linear. Nem tudo é a preto e branco.

 

2 Respostas para 'Memórias de Abril: nascimento da «gestão democrática das escolas» ou um exemplo de como nem tudo foram «cravos» em 1974'

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  1. Rui Mena said,

    Vivi esses tempos acompanhei por perto e recordo com paixão. Foram momentos dolorosos pela morte trágica que deixaram a escola em choque e em panico. Valeu pela disciplina e a forma em que a educação era seguida o que nos levou a encarar o resto da nossa formação com outra preparação.


  2. […] Memórias de Abril: nascimento da “gestão democrática das escolas” ou um exemplo de como nem t… […]


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