APEDE


Os outros trabalhos de Crato

Posted in De olhos bem abertos por APEDE em 25/06/2011

Nuno Crato é ministro da Educação, do Ensino Superior e da Ciência. No primeiro “post” que escrevemos após a sua nomeação congratulámo-nos por ver essas três dimensões debaixo de uma só tutela. Esta “inovação” governativa vem repor a unidade política que, num passado não muito distante, juntou tais vertentes.

Só que há um problema.

Como sucede com outros ministros deste governo, Nuno Crato tem agora a seu cargo não um, mas dois ministérios. O golpe de prestidigitação de Passos Coelho, subjacente à estrutura do actual governo, consistiu em eliminar ministros como se isso correspondesse à eliminação de ministérios. Pura ilusão para português engolir. Na verdade, não há (e muito provavelmente não haverá no futuro mais próximo) qualquer lei orgânica que funda efectivamente ministérios diferentes, o que exigiria coisas muito complicadas e difíceis de articular com o programa da “troika” e os seus prazos: coisas como a supressão de secretarias de Estado e  de directorias gerais, a redistribuição de funcionários, etc. Digamos que os custos imediatos de uma tal reforma iriam, quase de certeza, suplantar largamente os seus ganhos no médio prazo. Portanto, o governo “mais pequeno” é só um isco para uma comunicação social alarve e subserviente vender aos “tugas” como um achado brilhante de poupança nas contas públicas. Tretas e lérias que não auguram nada de bom em quem dizia querer romper com o lastro demagógico da era socratina.

Voltando a Nuno Crato. Ele vai ter, portanto, dois ministérios para gerir. Conhecemos todos o monstro tentacular que é o Ministério da Educação. O do Ensino Superior e Ciência é, supomos, mais levezinho. As suas exigências e desafios não são, porém, menores.

Nuno Crato herda de Mariano Gago um legado contraditório. Este ex-ministro introduziu, de facto, um corte profundo nos hábitos da investigação científica em Portugal. Antes dele, Portugal  encontrava-se numa situação de enormíssimo atraso, face ao restante “mundo ocidental”, no tocante à produção científica. O investimento era diminuto, não havia praticamente centros de investigação de relevo, os professores universitários podiam arrastar-se toda uma carreira a criar teias de aranha sem terem de publicar um único artigo numa revista nacional ou estrangeira. Não vamos dizer que, no cenário actual, essa paisagem lamentável se dissipou totalmente. Mas, sob o consulado de Mariano Gago, o panorama sofreu, sem dúvida, uma transformação considerável.

Hoje Portugal dispõe de unidades de investigação que se aguentam razoavelmente nas comparações internacionais, a produção científica cresceu exponencialmente e aumentou a sua qualidade, os centros de investigação multiplicaram-se e ganharam escala, a sua actividade está sujeita a avaliação e escrutínio por entidades credenciadas para esse efeito, os investigadores portugueses entraram nos circuitos e redes internacionais de investigação, e Portugal conseguiu beneficiar de muitas linhas de financiamento para a ciência – ou para aquilo que, pomposamente, se designa por I&D (Investigação e Desenvolvimento).

Mariano Gago teve vários méritos nesta “revolução”, por perceber há muito o alcance estratégico da ciência para um país como o nosso. Mas também é um facto que, num certo sentido, ele foi o homem encarregue de conduzir este «jardim à beira-mar plantado» a um destino quase inevitável. Numa fase de internacionalização e globalização crescente da ciência, com muito dinheiro a jorrar de diversos programas da União Europeia, era quase fatal que Portugal teria de apanhar esse barco se não quisesse ficar condenado à total irrelevância. Digamos também que certos sectores na academia portuguesa desejaram agarrar essa oportunidade e pressionaram nesse sentido – movidos às vezes por interesses que não tinham necessariamente que ver com a “ciência pura” (e aqui, para bom entendedor, meia palavra basta).

A investigação científica em Portugal continua, entretanto, a debater-se com enormes dificuldades e carências. Não há uma carreira científica digna desse nome que seja sustentada inteiramente pelo erário público. Isto significa que a ciência se faz, quase sempre, por pessoas com contratos a prazo e, pior ainda, por um batalhão de investigadores que vivem (ou sobrevivem) de bolsas de investigação da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), sempre sob o espectro do desemprego, sem qualquer direito a subsídio quando aquele lhes bate à porta, e sem terem sequer direito a uma pensão de reforma – visto que as bolsas não são consideradas propriamente um salário.

Se a isto somarmos o actual estrangulamento financeiro da FCT e os próprios cortes no investimento europeu em ciência – particularmente no domínio das ciências sociais e humanas -, diremos que não se avizinham tempos auspiciosos para a ciência num país periférico como Portugal. E a este último respeito o programa austeritário da “troika” só vem enegrecer ainda mais o cenário.

Se Mariano Gago deixou uma herança relativamente positiva na ciência em Portugal, já o mesmo não se pode dizer no que respeita ao ensino superior. Com ele, prosseguiu o aperto financeiro das universidades, a acentuada escassez de meios, situações caricatas (e dramáticas) em que certos estabelecimentos de ensino se aproximaram da falência técnica, com a ameaça de nem sequer poderem pagar os vencimentos do pessoal. Diversas universidades foram-se safando, melhor ou pior, com o aumento por vezes obsceno das propinas e com os chamados overheads (a parte do dinheiro atribuído aos projectos de investigação científica que reverte a favor das faculdades).

Em tudo isto Mariano Gago parece ter caracterizado a sua actuação por uma espécie de olímpica indiferença.

Claro está que esta nossa análise ficaria incompleta se não mencionássemos essa floresta de enganos e de engodos que tem sido o famigerado «modelo de Bolonha». Com as licenciaturas reduzidas a bacharelatos que não ousam dizer o seu nome e os mestrados reduzidos a conclusões de licenciatura a preços de luxo, a bolonhice transformou-se num negócio a que as universidades, famintas que estão de vil metal, se têm entregue com a voracidade dos predadores famélicos. É ver multiplicar, como cogumelos, os mais variados programas de mestrado e de doutoramento, feitos à medida para captar o estudante incauto e drenar a bolsa dos respectivos progenitores. O resultado mais proeminente é que as licenciaturas estão cada vez mais parecidas com um “ensino secundário níumero dois” e as pós-graduações descambaram no facilitismo total (sabiam que hoje uma tese de mestrado não deve ultrapassar umas escassas dezenas de páginas?)

É caso então para perguntar: e agora, Nuno Crato?

Confessamos que, em relação a tudo isto, desconhecemos a doutrina do actual ministro. Olhando, porém, para o programa do PSD, há razões mais que muitas para temermos o pior.

O programa do PSD para o ensino superior e a ciência foi congeminado por uma cabecinha, supostamente mui liberal e amiga do mercado, que subordina por completo o ensino e a investigação científica aos superiores interesses da economia exportadora. Não há, nesse programa, um único vislumbre do que seja a especificidade da produção do conhecimento, o interesse estratégico de uma produção científica autónoma e sustentável em todos os domínios do saber, a qual, se bem sucedida, até poderá ter mais impacto no crescimento económico do que a estreiteza de tal programa deixa entender.

Terá Nuno Crato sensibilidade para trocar as voltas à paupérrima ideologia que enforma o programa do PSD para o ensino superior e a ciência?

Ou iremos ver o grande crítico do «eduquês» deixar-se encantar pelas sereias do «economês»?

 

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