O programa do nosso descontentamento – 1
Vamos lá então desmontar a coisa. Vai ser trabalho para vários “posts”, ainda que a escassa substância da parte relativa à Educação aconselhasse, provavelmente, um comentário mais expedito. Mas nós vamos levar o cinismo ao ponto de fingir que aquilo tudo é para levar a sério.
Assim sendo, comecemos pelos primeiros parágrafos. A sensação é imediata: grandiloquência e aquelas “boas intenções” que se afivela para disfarçar muita vacuidade. Exemplos:
«O Governo assume a Educação como serviço público universal e estabelece como sua missão a substituição da facilidade pelo esforço, do laxismo pelo trabalho, do dirigismo pedagógico pelo rigor científico, da indisciplina pela disciplina, do centralismo pela autonomia.»
«(…) Criar consensos alargados sobre o plano estratégico de desenvolvimento tendo como horizonte temporal o ano de 2030.»
«(…) Apostar no estabelecimento de uma nova cultura de disciplina e esforço, na maior responsabilização de alunos e pais, no reforço da autoridade efectiva dos professores e do pessoal não docente.»
Espremendo, não sai nada: blá-blá.
Depois lá vem a piscadela de olho à mui liberal “liberdade de escolha” das famílias que, como se verá mais à frente, parece não apontar (ainda?) para o famoso «cheque-ensino» (pois o tempo é de vacas esqueléticas e o Estado não dispõe de dinheiro para experimentalismos liberalóides):
«Desenvolver progressivamente iniciativas de liberdade de escolha para as família em relação à oferta disponível, considerando os estabelecimentos de ensino público, particular e cooperativo.»
Encerrado o blá-blá dos “grandas” princípios, surgem as medidas. E aqui há que dizer que as primeiras a serem enunciadas primam por um bocejante dejá vu:
«Definição de metas para a redução do abandono escolar, melhoria do sucesso escolar em cada ciclo e aumento da empregabilidade dos jovens, associando estas metas a princípios de rigor na avaliação, de exigência nas provas e de mérito nos resultados.»
Onde está a novidade disto? Não é o que as escolas andam já a fazer e que, em bom rigor, se traduz em impactos invariavelmente nulos nas práticas educativas? Todos os anos os órgãos das escolas – direcções, conselhos pedagógicos, departamentos – consomem boa parte do seu tempo e energia a elaborar e a discutir «metas», «objectivos», «projectos educativos» – lérias que se limitam a uma retórica estafada, inócua, inútil.
A verdade é que, dissipado todo esse fumo e as tais “boas intenções” de que está cheio o inferno dos professores, estes continuam, melhor ou pior, a tentar realizar o núcleo essencial da sua profissão: ensinar, preparar aulas, acompanhar os alunos (muitas vezes, demasiadas vezes, substituindo-se a famílias que eles não têm ou que, se têm, não deviam ter). Se há mais alguma coisa para além disso, é certo e garantido que as escolas não o descobriram. E o Ministério ainda menos.
Em seguida, aparece no programa de governo a ideia de «um sistema nacional de indicadores de avaliação da Educação, em linha com as melhores práticas internacionais, garantindo transparência e confiança aos cidadãos e incentivando as famílias a tomar decisões mais informadas no exercício da sua liberdade de escolha». Pode ser que estejamos a ver mal o filme, mas esta conversa cheira a qualquer coisa de parecido com os tão sobrevalorizados rankings. Um critério qualquer para hierarquizar os estabelecimentos de ensino e as famílias ficarem todas informadas. A pergunta impõe-se: mas, se assim for, é mesmo disso que a Educação precisa em Portugal? Com tanto de importante para fazer, o Ministério vai andar entretido a escalonar escolas? Áh, espera lá! É para os pais “escolherem” a melhor escola para os filhos! Mas há ainda alguém no planeta, para lá da seita de fanáticos de Milton Friedman, que verdadeiramente acredite em semelhante treta?
Finalmente, a única medida com conteúdo prático:
«Generalização da avaliação nacional: provas para o 4.º ano; provas finais de ciclo no 6.º e 9.º anos, com um peso na avaliação final; exames nacionais no 11.º e 12.º ano.»
Ainda assim, isto precisa de ser esclarecido. Temos aqui três conceitos aparentemente distintos: «provas», «provas finais com um peso na avaliação final» e «exames nacionais». Esta última expressão significa o retorno a exames de carácter eliminatório, ou remete para exames que, tal como as «provas finais», se limitam também a ter um peso na avaliação final? Se esta última hipótese for a correcta, para quê então tanta dispersão vocabular? Não era melhor usar um único conceito? Para um crítico do «eduquês» como “novilíngua” dispensável, não está mal, não senhor!
Por fim, a medida que se segue é deprimentemente idêntica ao que já vinha exposto no programa do PSD: «Reestruturação do Programa Novas Oportunidades com vista à sua melhoria em termos de valorização do capital humano dos Portugueses e à sua credibilização perante a sociedade civil.» Realmente é caso para perguntar, como o Paulo Guinote fez várias vezes, que teia de interesses se move à sombra das Novas Oportunidades para que semelhante aberração se mantenha intocada nos seus pressupostos…
em 29/06/2011 em 10:45
É aqui que entra o patinho feio da avaliação docente que o novo ministro diz querer simplificada, funcionante e desburocratizada. Maravilha! Importa, no entanto integrar a coisa no seu contexto para adquirirmos uma consciência mais rigorosa do percurso do monstro. A primeira constatação a fazer é a de que a ADD não trouxe qualquer melhoria ao sistema e originou uma míride de problemas que confluem na perda de eficácia da escola pública e consubstancia um desvio importante da maioria das estruturas educativas das suas verdadeiras funções, além de um intolerável desperdício de meios e energias que deveriam ter melhor aplicação. A ADD inscreve-se numa “onda” que há anos vem perpassando os mais diversos sectores da sociedade e que mascara muito bem a má consciência dos dirigentes, na medida em que dá a “impressão” de que se está a trabalhar no caminho certo, na melhoria da qualidade, na estrada da excelência…etc. No entanto, um exame mais atento mostra o logro desta visão redutora. De facto, têm-se multiplicado as medidas e práticas avaliativas aos mais diversos níveis, mas é muito raro que quem de direito se dê ao trabalho de daí tirar as necessárias conclusões e mais raro ainda que se tomem as medidas decorrentes das avaliações feitas. Isto mostra que muito poucos acreditam de facto em avaliações sérias. Ora, se a avaliação não é objectiva, não é justa, não é correcta nem conduz a alterações qualitativas, cabe perguntar para que serve??? E isto a todos os níveis! As perguntas básicas são cada vez mais pertinentes (back to basics): Avaliar quem? Avaliar o quê? Avaliar como? Avaliar para quê?
Lembro-me de uma ficha de avaliação de manuais feita pelos iluminados da 5 de Outubro que permitia atribuir a TODOS os livros exactamente a mesma nota. Também a ADD visa no fundo atribuir o mesmo à maioria esmagadora dos docentes, deixando uma pequena margem para alguns mais esforçados que caibam nas quotas, isto apesar da máscara proporcionada pelas imensas discriminações dos parametros, domínios e similares. Tantos detalhes ínfimos para quê, afinal?? O mesmo resultado poderia conseguir-se com muitíssimo menos trabalho e em menos tempo. Eficácia…precisa-se. Quem é que a não quer ?????????