Para saber quanto nos estão a roubar não há como aplicar a aritmética
De Paulo Granjo, cujo original se encontra aqui.
Por muito chato que seja, às vezes vale a pena fazer contas. Até porque aqueles que nos vão ao bolso sabem apresentar as coisas de forma a que não nos apercebamos da dimensão do roubo.
Lembro-me sempre que, quando o governo anterior decretou os cortes de 5 a 10% nos salários dos trabalhadores de instituições públicas, um colega, naquela lógica bem nacional do «morreu, coitado, mas se ficasse entrevadinho era bem pior», me revelou o seu alívio por não nos terem cortado o subsídio de natal. Quando lhe pedi para multiplicar o corte mensal por 14, ficou muito espantado por verificar que já lhe tinham tirado isso e mais 15% de um outro salário…
Fazendo as contas com todos os factores, no entanto, a coisa fica ainda mais obscena.
Em 2011, considerando a inflação, os cortes salarias mensais e o corte no subsídio de natal (metade da parte que exceda o salário mínimo nacional), foram-me retirados 14,3% do salário. Ou seja, roubaram-me 2 meses de salário. Ou seja, ainda, na prática já não tive subsídio de natal nem de férias.
Em 2012, continuando a não ser compensada a inflação, continuando os cortes salariais mensais e não sendo pagos os dois subsídios, o meu salário vai ter um corte de 28,4%, em comparação com 2010. Ou seja, vão-me roubar quase 4 meses de salário. Ou seja, ainda, para além dos dois subsídios, vou andar mais 2 meses a trabalhar à borla.
O que, apesar de tudo, é um bocadinho diferente desse já escandaloso corte do subsídio de natal e do de férias. É o dobro!…
E não estamos ainda a tomar em conta os aumentos de impostos (via aumento do IVA, aplicação da sua taxa máxima a muitos bens de consumo correntes, e diminuição das deduções no IRS); só mesmo o que é directamente tirado do salário.
Por isso, meus amigos, façam as vossas próprias contas.
Convém sempre sabermos quanto é que, realmente, nos estão a roubar.
Perceber o que se passa
O original, de José Manuel Pureza (um bom deputado do BE que se perdeu nas últimas eleições) está aqui.
Contas feitas, o Governo tira-me a mim e a si o subsídio de férias e o subsídio de Natal para com eles pagar os desmandos da gestão do BPN. O Orçamento do Estado para 2012 prevê um montante de 4,5 mil milhões para avales e garantias do buraco no BPN. A ele acrescem os 1800 milhões que o Orçamento de 2010 destinou a custear a cobertura das imparidades. Se necessário fosse, fica claro, de uma vez por todas, com os numerozinhos todos, que o que pesa realmente na dívida do Estado não é a educação nem a saúde mas sim a vertigem do sistema financeiro que, ao contrário da esmagadora maioria das pessoas, tem vivido irresponsavelmente acima das suas possibilidades.
Ajudado pelo amigo Estado, pois claro. A coisa é de tal ordem que a insuspeita Comissão Europeia se viu na obrigação de abrir uma investigação para saber “se o processo de venda do BPN não implica um auxílio para o comprador”. Traduzido para bom português: a Comissão quer saber se o dinheiro do meu subsídio de férias e do seu subsídio de Natal é ou não usado para amaciar obstáculos ao exercício do Banco BIC, de capitais angolanos e liderado por Mira Amaral.
A sentença lavrada esta semana na cimeira de Bruxelas – que os bancos estão obrigados a uma rápida recapitalização que os ponha a salvo de impactos sísmicos à escala de todo o sistema – é um capítulo novo nesta novela em que o vilão exige que o tratem como herói. Os quatro principais bancos portugueses terão de reforçar, em oito meses, os seus capitais em 7800 milhões de euros. Até ontem, o recurso ao envelope a isso reservado pela troika era repudiado com veemência por Ricardo Espírito Santo e seus pares por nem quererem pensar na possibilidade de ver por perto a sombra do Estado como sócio. E o Governo, lesto, foi garantindo que o seu envolvimento na recapitalização dos bancos seria sempre passiva, sem a assunção de posições na respectiva gestão. O Estado dá o dinheiro que a troika lhe empresta, paga-o com os nossos impostos e garante aos bancos que não os vai incomodar nas suas decisões de gestão. Quem é amigo, quem é?
Há nisto tudo um exercício de desmemória, uma revisão da história que apavora. O BPN contaminou criminosamente a economia nacional e vai continuar a onerar cada um dos orçamentos das famílias portuguesas, privando-as de rendimentos essenciais – mas as gorduras a cortar são o meu salário e a sua pensão. Os quatro bancos mais importantes do País impuseram ao Estado a submissão diante da troika, empurrando assim a nossa economia e o rendimento de quem trabalha para o nível a que eles estavam nos anos 70 – mas o Governo jura não querer incomodar e manter-se à margem da gestão de quem esteve objectivamente na origem da nossa queda no abismo.
Só um tão geral esquecimento de como foi que chegámos aqui permite que o primeiro-ministro diga ao País, sem que isso cause escândalo social, que “só vamos sair da crise empobrecendo”. Passos Coelho afecta milhares de milhões de euros dos nossos impostos, dos nossos salários, dos cortes nos nossos serviços de educação ou da saúde, ao buraco sem fundo do BPN e é a nós que diz que temos de empobrecer se queremos sair da crise. Garante aos bancos que nos empurraram para os braços da troika e aos compradores dos nossos melhores bens públicos que terão sempre o Estado a ajudá-los mas sem os incomodar, e é a nós que diz que o caminho certo é o do nosso empobrecimento. Reconstruir a história como ela realmente foi tornou-se uma ameaça para os que ganham com esta crise.
As únicas questões estratégicas que importa discutir
Para acabar de vez com o blá-blá auto-iludido dos que pensam que as grandes iniciativas de combate contra o austeritarismo se reduzem a manifestações ou a greves de um só dia, e que ficam todos satisfeitos ao pensarem que «a rua é nossa» – quando os verdadeiros instrumentos de poder decisório continuam a ser “deles”.
Vamos partir do princípio de que concordamos com um caderno reivindicativo assente nas seguintes exigências:
– Auditoria integral da dívida pública, realizada por uma entidade politicamente credível e independente.
– Reestruturação da dívida pública, com base nos resultados dessa auditoria.
– Renegociação dos prazos e das condições de pagamento da dívida reestruturada.
Assim sendo, os partidos de esquerda, as direcções sindicais, os movimentos e as associações independentes deveriam passar a ser avaliados com base num critério muito simples: saber se estão ou não dispostos a equacionar uma destas questões (ou ambas):
-
Como forçar os actuais detentores do poder de Estado (governo, assembleia e presidência da República) a aceitar as exigências do referido caderno reivindicativo?
ou, numa alternativa mais radical:
-
Como conquistar o poder de Estado de modo a concretizar essas exigências?
Qualquer discussão intelectualmente honesta que se pretenda fazer sobre «acções de luta» terá de assentar na vontade de responder a estas questões. Os que nem sequer admitem colocá-las escusam de vir falar em lutar «a sério».
Tudo o que não seja pensar, em termos estratégicos e tácticos, com base nestas questões é, como dizem os brasileiros, conversa para boi dormir ou, como se diz cá no burgo, atirar poeira para os olhos das pessoas. Como se sabe, é isso mesmo que faz o João Pestana – Sandman, na versão anglo-saxónica. Trata-se de adormecer o pessoal com “tretas boé combativas”.
Da irracionalidade na política-que-temos
Ao invés de uma ideia que circula por aí, e que ainda hoje procuramos inculcar nas crianças, o ser humano não é um animal racional. Pelo contrário, a irracionalidade é o seu traço mais marcante, é a sua diferença específica.
Essa irracionalidade manifesta-se, entre muitos outros aspectos, pelo facto de que, confrontado com a necessidade de optar entre diversas alternativas para a resolução de um problema, uma boa parte dos humanos escolhe precisamente aquela que lhe é mais prejudicial, mesmo quando todas as evidências revelam ser esse o resultado previsível de uma tal escolha.
Este fenómeno é cabalmente ilustrado por tudo o que está acontecer, hoje em dia, nessas duas regiões do sistema mundial capitalista que são a Europa e os Estados Unidos. No caso particular da Europa, vemos desafiadas todas as regras da lógica no comportamento dos dirigentes políticos da União Europeia e da sua Zona Euro: perante a demonstração de que uma dada receita para a saída da crise é um completo fiasco, os chamados «líderes europeus» entendem que a alternativa é… aplicar uma dose reforçada da receita que falhou. O resultado é tanto mais irracional quanto, a breve prazo, isto vai levar à morte da galinha dos ovos de ouro do capital financeiro. Portanto, nem se pode dizer que esta irracionalidade política está, lá bem no fundo, ao serviço da racionalidade perversa do capital. Não, isto é mesmo estúpido até do ponto de vista dos interesses dos donos do dinheiro.
Só que nunca podemos menosprezar a cegueira irracional que habita qualquer crença dogmática. Neste momento, temos uma geração de políticos, à frente da Europa, que acreditam mais no que vem nos seus manuais de economia monetarista do que naquilo que a realidade lhes deveria estar a meter pelos olhos dentro.
Outro aspecto que confirma a sua irracionalidade básica: a grande maioria das pessoas fortemente afectadas (exploradas, oprimidas) pelos poderes constituídos recusa-se sistematicamente a tomar consciência da força que decorre, entre outros factores, do seu número incomparavelmente superior ao dos que as dominam. Sendo assim, em lugar das acções anti-opressivas que facilmente poderiam encetar, preferem a auto-ilusão de iniciativas meramente simbólicas de protesto cujo efeito consiste em compensar, no plano imaginário (e nunca material), a sua impotência real.
Aqui a irracionalidade está do lado daqueles que se sentem plenamente gratificados com a ocupação de praças, de ruas ou de avenidas, e que, pelos vistos, nunca equacionam ocupar empresas, parlamentos ou ministérios. É a irracionalidade daqueles que gritam «não pagamos!» nas manifestações, ao mesmo tempo que têm, de facto, os vencimentos drasticamente reduzidos, que sofrem os aumentos de impostos em tudo o que consomem e que, no emprego, vergam a mola perante os ditames arbitrários de patrões, de chefias ou de directores. É a irracionalidade dos que fazem um dia de greve para, no dia seguinte, continuarem a trabalhar em condições de despotismo ou de precariedade que permanecerão intactas. É, em suma, a irracionalidade dos que querem mudar sem nada fazerem que seja minimamente eficaz para essa mudança.
Vivemos, hoje, um duplo paradoxo – que é também uma dupla irracionalidade e um duplo falhanço:
– Os detentores do poder político insistem numa estratégia de fracasso que vai arrastar, consigo, a União Europeia e o euro como moeda comum e que, a não ser travada, terá como consequência a implosão da Europa e de uma grande parte do mundo capitalista.
– Mas os que se opõem a essa voragem suicida estão também, eles mesmos, empenhados numa estratégia de fracasso, escolhendo formas de “luta” e de “resistência” puramente virtuais e ilusórias que, na verdade, só confirmam a impotência (veja-se o saldo dos combates de rua na Grécia) e o medo de mudar efectivamente o que quer que seja.
A patalogia subjacente a estes comportamentos foi identificada, há muito tempo, por um certo vieenense. Chama-se «compulsão à repetição».
Tanta “seriedade” só dá vontade de rir (e de chorar)
Secretário-geral da Fenprof apela “à luta a sério”
Façamos, pois, o balanço de tanta “seriedade” no seu passado recente:
– Capitular perante políticas gravosas para os professores e procurar, depois, ocupar um lugarzinho acolhedor à sombra das mesmas – nomeadamente, promovendo acções de (de)formação para que os professores se tornassem peritos na sua execução.
– Desbaratar a única greve de um dia, com a adesão historicamente esmagadora que teve, que poderia ter servido como ponto de partida para formas drásticas de resistência nas escolas.
– Fazer tudo para desencorajar essa resistência e para desmobilizar os professores.
– Negociar, nas costas dos professores, memorandos de entendimento e acordos que os prejudicam.
– Regressar a acções de rua pindéricas, reduzidas ao protesto pífio só para marcar agenda e fazer papel de (morto-)vivo.
– Regressar às greves gerais desgarradas que só servem para os vampiros que nos (des)governam meterem um dia de salário dos trabalhadores nos cofres do BPN.
De “seriedade” em “seriedade” até à gargalhada final. Aquela em que só riem os nossos desgovernantes – e quem os tem no bolso.
Ouviram falar disto?
Esta notícia fez ontem as parangonas de um conhecido jornal diário. Mas, curiosamente, não demos por ela ter sido amplamente comentada ou discutida nas televisões e na blogosfera.
E…
… contudo…
… isto é surreal, isto é perverso, isto é demasiado grave.
Parece, no entanto, que o pessoal já está disposto a tudo e a tudo se verga e com tudo se conforma.
A característica principal dos vampiros é nunca estarem satisfeitos
PORTUGAL AVISADO PARA EVENTUAIS MEDIDAS ADICIONAIS…
… tão eficazes no combate ao desemprego, na redução da dívida e na promoção do crescimento económico com as que já foram adoptadas.
Dedicado a todos os que recusam o falhanço socialmente organizado (e para os que amam Brassens e a língua francesa)
O genial autor desta canção – talvez o melhor escritor de canções da língua francesa – teria feito 90 anos em 22 de Outubro do corrente ano, se ainda estivesse entre nós. É claro que continua a estar. Imperdoavelmente, deixámos passar essa efeméride. Redimimo-nos agora, com uma canção que celebra todos os que se recusam a viver no redil e a pertencer ao rebanho:
O grande embuste
Os nossos desgovernantes, e o ministro das Finanças em particular, estão marrecos de saber que não vão conseguir controlar as despesas públicas para atingir a meta de défice que lhes (nos) foi imposto. E sabem muito bem que não haverá lugar para qualquer «alteração estrutural que permita erradicar permanentemente o descontrolo da despesa». Estão perfeitamente cientes de que, mais cedo do que mais tarde, terão de pedir novos “resgates” e “ajudas” aos predadores do costume. E percebem que, no fim, terão mesmo de pedir a reestruturação e a renegociação da dívida – pois, como eles gostam de dizer, não há outra alternativa.
Mas, por enquanto, vão mentindo com a boca toda, para justificarem o seu próprio acto de predação caseira.
Blá-blá-blá
Comunicado da reunião do Conselho de Estado.
Alguém consegue explicar para que serve este órgão?
As políticas de Maria de Lurdes Rodrigues vão estar, finalmente, em tribunal
Como, infelizmente, se previa, o jornalismo servil, apostado em desinformar e intoxicar por encomenda política, que vive do conúbio permanente com quem manda, lá conseguiu que um juiz desta fabulosa e eficientíssima justiça-que-temos levasse o Paulo Guinote a tribunal, com base num processo por difamação.
O pecado do Paulo? Ter ousado defender uma opinião livre, de forma contundente e fundamentada, num país onde a cultura salazarenta do “respeitinho é que é bonito” e a incapacidade de conviver com a liberdade continuam a ditar as regras. Que o Ministério Público insista em dar guarida a tais processos diz tudo sobre a forma fascistóide como os magistrados que deviam zelar pela justiça interpretam o exercício da liberdade de expressão e, já agora, sobre as prioridades que os motivam.
Em democracias que, com todos os seus imensos defeitos, têm uma tradição efectiva de culto pela liberdade de pensamento um processo por difamação como o agora movido contra o Paulo seria simplesmente impensável. A ideia não passaria a primeira barreira do ridículo. Quem pense que o Paulo foi demasiado “agressivo” nas palavras que dirigiu ao jornalista Chitas, páre por um momento, passeie os olhos e os ouvidos pelos programas do Jon Stewart, e rapidamente concluirá que, ao pé da linguagem usada por este génio da verrina e do sarcasmo, o Paulo foi de um comedimento admirável.
E então o resto? O resto, meus senhores, são argumentos. Argumentos que, num país normal que não nesta cloaca a céu aberto, se combateriam com argumentos e não com intimidações pidesco-justicialistas. Típicas de cobardolas que se acoitam por detrás de leis feitas à medida do seu ressabiamento e da sua incapacidade de polemizarem de maneira aberta e frontal.
Há, contudo, um aspecto positivo que podemos extrair de todo este lamentável caso. É que, pelos vistos (e porque em Portugal não há limites para o surreal), a ex-ministra Maria de Lurdes Rodrigues vai depor em tribunal como testemunha do seu querido jornalista “difamado”. Isto confirma, aliás, toda a infantilidade do Chitas: vendo-se em apuros, foi fazer queixa à mamã que, pressurosa, corre em auxílio do filhinho. Perante cena tão comovedoramente edipiana, qual é o estômago que não se enternece até ao vómito?
Mas aqui apetece fazer uma perguntinha: será que a senhora é tão inconsciente (para não dizer outra coisa “difamatória”) que não calcula o sarilho em que se vai meter? A sua presença no tribunal, tendo em conta a “matéria” que vai a julgamento, só pode dar azo a que os termos se invertam: de réu, o Paulo – e, com ele, cada um de nós – facilmente passará a acusador. Será uma excelente oportunidade para, finalmente, fazer-se o processo do que foram as desastrosas políticas de (des)educação do consulado de Lurdes Rodrigues. O Paulo já sugeriu que não vai deixar perder esse pitéu e nós, pela nossa parte, tentaremos ajudá-lo no que for preciso.
Para já, fica aqui a nossa solidariedade com o Paulo – e o desejo de vivermos num país respirável.
Falhados socialmente organizados, uni-vos!
(Este “post” vai com uma vénia ao José Gabriel Pereira Bastos, a quem roubámos, despudoradamente, algumas ideias)
No nosso modesto entender, contrariamente ao que muitas teorias sugerem, a grande questão política, a única que merece verdadeiramente resposta, não é saber qual o melhor regime ou qual a mais justa forma de governo. Antes desse problema há outro mais premente e mais básico. Resume-se a uma pergunta enganadoramente simples, quase infantil:
Por que é que, ao longo dos diferentes «mundos históricos», das diversas «formações económico-sociais» ou dos sucessivos «sistemas-mundo» – as designações são indiferentes –, o sofrimento humano foi muito maior, muito mais intenso e extenso, muito mais versátil e multiforme, muito mais alimentado e frequente, do que a felicidade?
Esta pergunta pode ser desdobrada noutra, mais específica:
Por que é que os meios de luta contra o sofrimento oriundo do próprio corpo e do mundo externo se converteram, através do relacionamento entre os homens, em condições de sofrimento acrescido?
E, se quisermos levar o inquérito mais fundo, também podemos lançar outra questão falsamente “naïf”:
Por que é que, no decurso da história do relacionamento entre os homens, foi sempre uma minoria que infligiu o sofrimento a uma vastíssima maioria de seres humanos?
Começar a responder a estas perguntas – sobretudo à última – devia ser tarefa de todos aqueles que se preocupam com o problema da emancipação. E é por terem fracassado miseravelmente nessa resposta que as teorias supostamente salvadoras da humanidade quase sempre geraram o seu oposto: mais sofrimento colectivamente distribuído. O caso do «socialismo real» da Europa de Leste é apenas um exemplo a somar a uma longa lista de ilusões culturais, políticas e religiosas.
Ao longo dos séculos, com raras e honrosas excepções e com matizes que não cabe aqui esmiuçar, a humanidade tem-se dividido em dois grupos: a escassa minoria dos socialmente dominadores/exploradores/predadores e a ampla maioria dos falhados socialmente organizados. Por cá, em tempos recentes, este último grupo integra os partidos-de-esquerda-que-temos, as centrais sindicais-que-temos, os activistas-de-rua-que-temos, os indignados-que-temos, mas também os trabalhadores-que-temos e os eleitores-que-temos.
São falhados porque todas as suas acções estão orientadas para a ineficácia política e social: são incapazes de compreender e de escolher as estratégias que permitiriam torná-los social e politicamente triunfantes.
Para citar o José Gabriel, os trabalhadores-que-temos aceitam entrar na procissão que as centrais sindicais e os partidos de esquerda concebem para eles, «descem a Avenida, realizam a Missa sindical e depois levantam o Circo e no dia seguinte amocham e vão para o trabalho, com menos um dia de salário no bolso (é o ‘imposto sindical’ pago voluntariamente ao Estado contra o qual ‘protestam’, satisfeitos com a sua impotência tão bem disfarçada de ‘potência’)». E parece que não são capazes de fazer mais do que isto. Parece que não conseguem mais do que tentar adaptar-se às condições do seu próprio quotidiano triste, explorado e medroso, com interrupções catárticas que não servem rigorosamente para nada.
Quanto aos eleitores-que-temos, subgrupo dos falhados socialmente organizados que coincide, em grande parte, com o dos trabalhadores-que-temos, não vale a pena demorarmo-nos em análises. É bem eloquente o facto de, na sua grande maioria, votarem sistematicamente naqueles que têm como programa depauperá-los o mais possível, reforçar as condições da sua miséria e do seu sofrimento.
A cegueira e a alienação constituem a tónica dos falhados socialmente organizados. Vivem animados de um «desejo de não saber» e preferem sempre a última ilusão narcísica que compensa o estado de sofrimento, ou de impotência, em que se arrastam.
Claro está que os socialmente dominadores ou triunfantes não são menos alienados. A sua auto-ilusão consistem em se fantasiarem como infinitamente superiores aos outros e como tendo uma espécie de direito social a esmagar os que estão na mó de baixo. Na melhor das hipóteses, isto é para eles tão óbvio que nem páram muito para pensar nos efeitos das suas práticas predatórias (pessoalmente, até podem ser excelentes pessoas). Mas a alienação que os move, ao contrário da que pesa sobre os falhados, é extremamente eficaz no contexto da luta de classes e no combate pelo triunfo identitário.
Falámos do desejo (inconsciente) de não saber e de não pensar. O conhecimento, no entanto, até está disponível. Dois velhos barbudos, este:
e este:
explicaram, há muito tempo, o essencial do que há para perceber.
Só que o desejo de não saber é de tal forma poderoso que os seus alegados seguidores tudo fizeram para enterrar (Freud chamava-lhe recalcar) o legado que nos deixaram.
Enquanto as lições destes dois pensadores não forem devidamente digeridas e integradas, vamos continuar a apostar na estratégia do fracasso. E vamos continuar a sustentar, com a nossa impotência travestida de “luta”, os que detêm o poder efectivo.
Nós, os falhados socialmente organizados.
Uma sugestão para quem nela queira pegar
Pequeno intróito. Hoje fomos obtendo mais informações sobre aqueles portugueses que, à custa do erário público – ou seja, de todos nós -, têm andado a sugar o tutano a este país. Não por acaso, são exactamente os mesmos que vêm agora defender que os seus conterrâneos, por eles vampiririzados à tripa-forra, devem aceitar como inevitável a “necessidade” de mais e mais sacrifícios, tantos quantos forem necessários para que eles possam manter as sinecuras, os privilégios que se auto-atribuíram, a protecção das negociatas escuras e criminosas, etc., etc.
Não acrescentaremos mais observações aos comentários lapidares que o Octávio Gonçalves e o Paulo Guinote dedicaram à escumalhosa “elite” que nos coube em azar. Mas, no meio de toda a repulsa, há uma ideia que começou a desenhar-se no nosso espírito.
Por que não aplicar aos nababos da politiquice nacional – que não pretendem abdicar de um milímetro das suas regalias e que, quando o fazem, esperneiam por todos os lados – o mesmo método de denúncia da «Funa» chilena?
Explicamos: no Chile, a Funa é uma acção popular que consiste em identificar o local onde vivem ou trabalham torcionários da ditadura de Pinochet, que entretanto se ocultaram por detrás de uma vida “normal”, e chamar a atenção dos seus colegas, dos vizinhos, dos comerciantes do bairro para o facto de que fulano tal é, afinal, um assassino, um torturador, etc. Procura-se exigir justiça, a fim de que esses canalhas sejam levados a tribunal. Mas, no imediato, trata-se de não os deixar tranquilos nem por um minuto e, sobretudo, de fazer com que eles não se escondam, de expor o esgoto à luz do dia. O caso da «funa» em torno daquele que é suspeito de ser o assassino de Victor Jara constitui uma perfeita ilustração desta forma de luta.
Pondo de lado as diferenças (obviamente imensas) entre os torcionários chilenos e os políticos do nosso centrão que têm vivido à grande, refastelados nos benefícios de um Estado que eles pretendem “emagrecer” desde que a magreza não lhes toque, a verdade é que estes últimos estão mesmo a pedir uma «funa» à portuguesa.
A malta que passa a vida em inócuas «acampadas», «ocupações de rua» e «assembleias populares», por que não usam toda essa energia para chatear até à medula figurões como Armando Vara, Dias Loureiro, Isaltino Morais, Jorge Coelho, Joaquim Ferreira do Amaral, etc., etc.?
Método possível (aceitam-se outras ideias, desde que não envolvam agressão física ou homicídio): identificar a residência desta canalhada e colocar na fachada do prédio cartazes a denunciar: «aqui vive o senhor 3.000 euros de pensão vitalícia» ou «aqui vive o senhor 2.200 euros de pensão vitalícia»; chamar a atenção dos transeuntes; e, quando os cavalheiros saem à rua ou chegam dos seus gabinetes, lançar-lhes palavras de ordem nas trombas e filmar tudo muito bem filmadinho. Divulgar os filmes no YouTube, no Facebook, na blogosfera. Não lhes dar tréguas. Persegui-los. Estar onde eles estiverem. Não consentir que façam declarações impunes à comunicação social. Fazer do seu quotidiano um pequeno inferno.
E exigir o óbvio: que o governo tenha a decência de, pelo menos, acabar com os «direitos adquiridos» de indivíduos que têm fortíssimas responsabilidades no estado calamitoso a que chegámos.
O pessoal queixa-se de falta de ideias para formas de luta imaginativas ou menos rotineiras? Aqui têm uma.
Para memória futura
A direcção do jornal Expresso e o núcleo do seu corpo redactorial não se têm propriamente notabilizado pela lucidez e pela clarividência política. Bem pelo contrário. Recentemente, porém, Nicolau Santos tem vindo a acertar na “mouche” com uma regularidade digna de menção. Fica aqui a parte essencial da sua coluna de opinião desta semana. Para memória futura – pois nela se antecipa o pior que vem aí. E porque a sua crítica das opções do ministro das Finanças e do governo de Passos Coelho é o exemplo de como a contundência rima com pertinência:
(Como sempre, se clicarem na imagem não têm de esforçar a vista)
A palhaçada continua e os governantes-que-temos insistem na provocação social.
Austeridade para todos? Equidade na distribuição dos sacrifícios? Claro que não. Apenas retórica que se esboroa perante os factos que vamos conhecendo. Como este, relatado nas páginas do Diário de Notícias:
Dois membros do Governo que têm casa própria em Lisboa recusam a ideia de não receber o apoio que lhes foi dado por a residência permanente estar a mais de 100 km da capital. Gabinete de Gaspar não comenta cenário de recuar na atribuição deste subsídio. Há nove governantes que recebem um subsídio de alojamento, que teve efeitos a partir da posse. O despacho do primeiro-ministro data de 20 de Setembro e atribui o apoio aos membros do Governo que não tenham residência permanente na cidade de Lisboa ou numa área circundante de 100 km. Mas um ministro e um secretário de Estado têm casa própria em Lisboa e, no caso de Miguel Macedo, titular da Administração Interna, a sua declaração de rendimentos indica duas moradas – a de Lisboa e uma em Braga – onde, garante o seu gabinete, reside. Já José Cesário argumenta que tem “direito de ter tratamento igual ao de qualquer funcionário da administração pública”. O Ministério das Finanças não comenta a possibilidade de cortar este subsídio, que pode ir até 1400 euros brutos.
Num momento como o que atravessamos, de “emergência nacional”, estas situações não passam de uma pura provocação social. Se um agente da PSP, com 10 anos de serviço, ganha cerca de 850 euros líquidos, como se pode aceitar que o ministro da Administração Interna se dê ao luxo de arrecadar para cima de 1000 euros apenas em subsídio de alojamento, independentemente de morar ou não em Lisboa? Quanto ao argumento de José Cesário… depois de respirar fundo, talvez, enfim, recordar-lhe que os professores colocados a 200, a 300 e mais km de casa, todos os anos… e anos após anos, têm de pagar dos seus parcos vencimentos o aluguer das casas ou quartos onde vivem. Mas esses são funcionários públicos de 2ª categoria, com estatuto muito menos privilegiado. E continuam no “olho do furacão”, assistindo à degradação das suas condições de vida e direitos laborais, enquanto os governantes-que-temos se vão… governando.