Falhados socialmente organizados, uni-vos!
(Este “post” vai com uma vénia ao José Gabriel Pereira Bastos, a quem roubámos, despudoradamente, algumas ideias)
No nosso modesto entender, contrariamente ao que muitas teorias sugerem, a grande questão política, a única que merece verdadeiramente resposta, não é saber qual o melhor regime ou qual a mais justa forma de governo. Antes desse problema há outro mais premente e mais básico. Resume-se a uma pergunta enganadoramente simples, quase infantil:
Por que é que, ao longo dos diferentes «mundos históricos», das diversas «formações económico-sociais» ou dos sucessivos «sistemas-mundo» – as designações são indiferentes –, o sofrimento humano foi muito maior, muito mais intenso e extenso, muito mais versátil e multiforme, muito mais alimentado e frequente, do que a felicidade?
Esta pergunta pode ser desdobrada noutra, mais específica:
Por que é que os meios de luta contra o sofrimento oriundo do próprio corpo e do mundo externo se converteram, através do relacionamento entre os homens, em condições de sofrimento acrescido?
E, se quisermos levar o inquérito mais fundo, também podemos lançar outra questão falsamente “naïf”:
Por que é que, no decurso da história do relacionamento entre os homens, foi sempre uma minoria que infligiu o sofrimento a uma vastíssima maioria de seres humanos?
Começar a responder a estas perguntas – sobretudo à última – devia ser tarefa de todos aqueles que se preocupam com o problema da emancipação. E é por terem fracassado miseravelmente nessa resposta que as teorias supostamente salvadoras da humanidade quase sempre geraram o seu oposto: mais sofrimento colectivamente distribuído. O caso do «socialismo real» da Europa de Leste é apenas um exemplo a somar a uma longa lista de ilusões culturais, políticas e religiosas.
Ao longo dos séculos, com raras e honrosas excepções e com matizes que não cabe aqui esmiuçar, a humanidade tem-se dividido em dois grupos: a escassa minoria dos socialmente dominadores/exploradores/predadores e a ampla maioria dos falhados socialmente organizados. Por cá, em tempos recentes, este último grupo integra os partidos-de-esquerda-que-temos, as centrais sindicais-que-temos, os activistas-de-rua-que-temos, os indignados-que-temos, mas também os trabalhadores-que-temos e os eleitores-que-temos.
São falhados porque todas as suas acções estão orientadas para a ineficácia política e social: são incapazes de compreender e de escolher as estratégias que permitiriam torná-los social e politicamente triunfantes.
Para citar o José Gabriel, os trabalhadores-que-temos aceitam entrar na procissão que as centrais sindicais e os partidos de esquerda concebem para eles, «descem a Avenida, realizam a Missa sindical e depois levantam o Circo e no dia seguinte amocham e vão para o trabalho, com menos um dia de salário no bolso (é o ‘imposto sindical’ pago voluntariamente ao Estado contra o qual ‘protestam’, satisfeitos com a sua impotência tão bem disfarçada de ‘potência’)». E parece que não são capazes de fazer mais do que isto. Parece que não conseguem mais do que tentar adaptar-se às condições do seu próprio quotidiano triste, explorado e medroso, com interrupções catárticas que não servem rigorosamente para nada.
Quanto aos eleitores-que-temos, subgrupo dos falhados socialmente organizados que coincide, em grande parte, com o dos trabalhadores-que-temos, não vale a pena demorarmo-nos em análises. É bem eloquente o facto de, na sua grande maioria, votarem sistematicamente naqueles que têm como programa depauperá-los o mais possível, reforçar as condições da sua miséria e do seu sofrimento.
A cegueira e a alienação constituem a tónica dos falhados socialmente organizados. Vivem animados de um «desejo de não saber» e preferem sempre a última ilusão narcísica que compensa o estado de sofrimento, ou de impotência, em que se arrastam.
Claro está que os socialmente dominadores ou triunfantes não são menos alienados. A sua auto-ilusão consistem em se fantasiarem como infinitamente superiores aos outros e como tendo uma espécie de direito social a esmagar os que estão na mó de baixo. Na melhor das hipóteses, isto é para eles tão óbvio que nem páram muito para pensar nos efeitos das suas práticas predatórias (pessoalmente, até podem ser excelentes pessoas). Mas a alienação que os move, ao contrário da que pesa sobre os falhados, é extremamente eficaz no contexto da luta de classes e no combate pelo triunfo identitário.
Falámos do desejo (inconsciente) de não saber e de não pensar. O conhecimento, no entanto, até está disponível. Dois velhos barbudos, este:
e este:
explicaram, há muito tempo, o essencial do que há para perceber.
Só que o desejo de não saber é de tal forma poderoso que os seus alegados seguidores tudo fizeram para enterrar (Freud chamava-lhe recalcar) o legado que nos deixaram.
Enquanto as lições destes dois pensadores não forem devidamente digeridas e integradas, vamos continuar a apostar na estratégia do fracasso. E vamos continuar a sustentar, com a nossa impotência travestida de “luta”, os que detêm o poder efectivo.
Nós, os falhados socialmente organizados.