Um SIM inequívoco à recuperação integral do tempo de serviço dos professores – Jornal Expresso (27/01/23)
A recuperação integral do tempo de serviço é uma questão de justiça, de princípio e de respeito.
De justiça, porque não podemos viver num país onde coexistem dois sistemas de recuperação do tempo de serviço, que geram injustiças e desigualdade entre profissionais do mesmo ofício. Sendo certo que os arquipélagos são regiões autónomas, não é aceitável termos professores da mesma Escola Pública em situações tão diferentes apenas porque uns lecionam nos arquipélagos e outros no continente. Aos primeiros foi reconhecido o direito à contagem integral do tempo de serviço e aos últimos apenas uma pequena parcela, contrariando o princípio da igualdade consagrado na Constituição, com óbvios efeitos discriminatórios, quer no salário atual, quer na reforma futura.
A contagem integral do tempo de serviço é ainda uma questão de justiça, pois o reposicionamento dos docentes que entraram na carreira após 2011, e aos quais foi contabilizado todo o tempo de serviço não congelado, fez com que se verificassem ultrapassagens de muitos outros colegas que, já estando na carreira antes de 2010, viram vários anos do seu tempo de serviço perdidos na transição entre as várias estruturas de carreira. Estas injustiças só se resolverão com a recuperação integral do tempo de serviço congelado, para todos, e com um correto reposicionamento na carreira.
Mas essa recuperação é também uma questão de princípio e de respeito porque esses anos foram efetivamente trabalhados, nas condições que se conhecem, assegurando o direito dos alunos a uma educação plena, desarmando desigualdades, incluindo todos, rasgando horizontes e semeando futuro. Que moral têm os governantes para dizer aos professores, e a outros funcionários, que não lhes podem pagar o que é devido, quando pagam até o que não devem e a quem não se justifica, e ainda se esquecem que o fizeram? Nesta teia macabra de favorecimentos, compadrios, corrupção e incompetência, por onde o dinheiro vai escorrendo, importa dizer aos pequenos políticos que temos tido, tão afastados da ética republicana, que proclamam mas não praticam, que os professores estão exaustos, frustrados, revoltados! E que muitos partem, outros não voltam, e haverá cada vez menos! E sem professores motivados não há educação, não há progresso, nem futuro!
Se este problema não se resolver, vamos continuar a ter uma classe docente zangada, sentindo-se traída e defraudada, com a certeza do dever cumprido, mas de relações cortadas com os governantes e profundamente descontente, sendo que as migalhas colocadas em cima da mesa terão sempre um sabor amargo.
Termino com um excerto de um texto enviado por uma ex-aluna, jovem ativista e cidadã de corpo inteiro: “Esta luta é dos professores e de todos os outros funcionários da Escola Pública, mas tem de ser também a luta de todos nós. Um país que valorize a Educação e o seu futuro não pode ser um país que despreze e mantenha em condições precárias os seus professores.”
E eu concordo tanto contigo, Madalena!
Um beijinho do teu professor.
Ricardo Silva
(Texto publicado na coluna DUELO do jornal Expresso, dia 27 de janeiro de 2023)
APEDE: UM PERCURSO
Em 2007, durante o consulado de José Sócrates, à frente do governo, e de Maria de Lurdes Rodrigues como ministra da Educação, no auge de um dos maiores ataques à dignidade da profissão docente que Portugal conheceu, umas largas centenas de professores, reunidos numa escola do ensino secundário das Caldas da Rainha, decidiram criar a Associação de Professores em Defesa do Ensino (APEDE). Eram docentes que vinham das mais diferentes regiões do país: de Braga, de Barcelos, de Leiria, das Caldas da Rainha, de Sintra, de Lisboa, entre outras. Unia-os a indignação perante o projecto de desvalorização, de degradação da carreira docente e os contínuos insultos à condição profissional dos professores, timbre da equipa ministerial de então. Unia-os também a necessidade de ir mais longe nas estratégias de resistência e de luta. Mais longe do que as formas, rotinizadas e esclerosadas, que os sindicatos do sector continuavam a privilegiar. Nessa altura, a APEDE procurou contribuir para a mobilização dos professores que, de norte a sul do país, combatiam uma agenda política apostada em aumentar a precariedade docente, em submetê-los a um modelo de avaliação iníquo, em criar divisões espúrias no seio da carreira, em subverter a sua progressão salarial de modo a degradar, estrategicamente, o nível de rendimentos dos professores, etc. Ao longo de 2007 e de 2008, em conjunto com outros movimentos independentes que então surgiram (o MUP e o PROmova, entre outros), a APEDE esteve em quase todas as batalhas que valeram a pena: com os escassos meios de que dispúnhamos, conseguimos organizar encontros nacionais de professores em Leiria, plenários em diversas escolas, manifestações em frente da Assembleia da República, do Palácio de Belém e do Ministério da Educação, fomos recebidos pelos diferentes grupos parlamentares (à excepção do PS) e pela Comissão Parlamentar de Educação e Ciência, marcámos presença na blogoesfera docente, nos palcos mediáticos, combatendo a tentativa de imposição de uma carreira vertical, dividida entre professores e professores titulares, e lutámos contra a entrega dos objetivos individuais e dos relatórios finais de avaliação, denunciando o kafkiano modelo de avaliação docente imposto pela tutela, acompanhando e apoiando colegas no processo da sua suspensão pelas próprias escolas. Foram muitas horas de esforço, muitas reuniões de trabalho, muitas viagens, muitas noites mal dormidas.
Não nos foi possível, porém, contrariar o clima de desânimo que se apropriou dos professores na sequência do “Memorando de Entendimento” que a frente sindical assinou com o Ministério da Educação, e que a APEDE e os restantes movimentos independentes de professores sempre combateram, memorando que serviu para esvaziar e paralisar o combate dos professores e que, em grande medida, abriu caminho à consagração dos piores vícios instalados no sistema de ensino nestes últimos quinze anos: o fim da democracia interna nas escolas com a imposição do poder unipessoal dos directores; a redução dos professores a meros executores de ordens, despojados de qualquer poder decisório sobre um local de trabalho cada vez mais hierarquizado; os bloqueios arbitrários na progressão na carreira, concebidos para promover a erosão salarial, com um sistema de quotas na transição entre certos escalões que tem gerado as mais variadas injustiças, aprofundadas pelo despotismo, latente ou escancarado, do actual modelo de administração escolar; a acumulação de trabalho burocrático que gangrena a dedicação dos professores à essência pedagógica da sua profissão e aprofunda o sadismo institucional que se apoderou das escolas. Os professores da APEDE nunca procuraram protagonismo, luzes da ribalta e ainda menos compensações ou transições oportunistas para lugares ao sol em paisagens mais aprazíveis. Encerrado o capítulo da luta de 2008, regressámos ao lugar onde, afinal, sempre estivemos: a preparar aulas, a leccioná-las, a acompanhar os alunos e a dar o melhor de nós para formá-los como cidadãos conscientes de si e do valor do conhecimento. Agora, num momento histórico em que os professores romperam com uma atitude de desmoralização e de resignação para, de novo, lutarem pelos seus direitos, alguns de nós voltam a dar a cara por esse combate. Fazemo-lo com as mesmas razões que nos guiaram em 2008. Não é por gosto que nos encontramos, novamente, a dar entrevistas ou a participar em debates televisivos. Teríamos preferido continuar longe dos focos mediáticos, concentrados naquilo que gostamos realmente de fazer: estudar, ensinar, trabalhar com os alunos, desarmando desigualdades, rasgando horizontes e semeando futuro. Infelizmente, se aqui estamos uma vez mais é porque, ao fim destas últimas décadas, a condição docente se acha, em Portugal, no seu ponto mais aviltante. E a APEDE sente, pois, a necessidade de juntar a sua voz à dos milhares de professores que, nas escolas deste país, estão a gritar: basta!