APEDE


Observações pós-eleitorais – 4

Posted in Cenários da pequena política à portuguesa por APEDE em 24/01/2011

Em Portugal (e não só), a direita tem essa “espantosa” capacidade de tocar a reunir sempre que lhe cheira à proximidade do poder. Também ajuda o facto de não gastar muita energia com bizantinices doutrinárias, daquelas que, à esquerda, encontramos por aqui e por aqui, e que estão sempre prontas a alimentar o estilhaçamento identitário e a propensão para o grupúsculo entrincheirado em que a história da esquerda é fértil – uma gente que nunca esquece nada e que nunca aprende nada com aquilo que não esquece.

Vem isto a propósito da candidatura desastrosa e desastrada de Manuel Alegre.

O que terá passado pela cabeça dos seus mais fervorosos apoiantes para imaginarem que Alegre, com um discurso politicamente oco, polvilhado com umas vagas referências retóricas ao Estado Social e ao Serviço Nacional de Saúde, seria capaz de federar o eleitorado de esquerda e de o mobilizar no voto contra Cavaco Silva?

É verdade que Manuel Alegre tem um passado de resistente antifascista digno de respeito, e é verdade que legou algumas das melhores letras das canções dessa resistência. Também é verdade que nunca teve uma palavra de reconhecimento a Mário Viegas pela forma como este, enquanto declamador genial, ajudou a divulgar a sua poesia. É verdade que Manuel Alegre foi dos raros que, no PS, esboçou algum desalinhamento com as políticas socratinas. Também é verdade que, a esse respeito, foram maiores as suas ambiguidades e meias-tintas do que a sua clareza e frontalidade. É verdade que Manuel Alegre gosta de cães e escreveu um comovente livrinho sobre a amizade que nos pode unir a esses bichos. Também é verdade que o poeta consegue ser, às vezes, de uma arrogância e má-criação insuportáveis.

Em suma, Alegre foi, nestas eleições, um gigantesco erro de “casting”. Para piorar tudo, o homem surgiu intempestivamente a anunciar uma candidatura na esperança de encostar o PS à parede para obter o seu apoio. Ora, ter o apoio do PS significava aqui ter o apoio de Sócrates e do actual governo. O que, em termos de esquerda, significava essa coisa paradoxal de andar à procura do apoio de um partido que é, para todos os efeitos práticos, de direita. Temos, portanto, que o grande candidato da esquerda foi apoiado por uma parte da direita. O caminho para o suicídio político não poderia ser mais fácil…

Como se isto não bastasse, o Bloco de Esquerda apressou-se a juntar-se a esta tragicomédia da política à portuguesa. Antes de todos – antes até de perguntar às suas bases o que pensava – a Direcção do Bloco veio anunciar o seu apoio ao poeta. Como este, meses antes, tinha partilhado uma mesa numa iniciativa promovida pelo partido de Louçã, este imaginou que Alegre era a aposta certa. Com isto, o Bloco de Esquerda desferiu um portentoso tiro no pé, do qual não vai recuperar tão cedo.

Quanto ao poeta, depois de desbaratar o seu mítico milhão de eleitores da corrida eleitoral anterior, poderá regressar, de vez, à  inocuidade do seu lugar na  bancada parlamentar, aos seus louros e à sua glória…

 

 

Observações pós-eleitorais – 3

Posted in Cenários da pequena política à portuguesa por APEDE em 23/01/2011

Outro aspecto eloquente dos resultados eleitorais de hoje tem que ver com o facto de todas as dúvidas, mais do que legítimas, que se levantaram durante a campanha eleitoral sobre os negócios de Cavaco Silva não terem sido suficientes para demover o «bom povo português» de lhe dar o voto. Isto revela, uma vez mais, como qualquer escrutínio sobre as figuras que exercem cargos públicos é invariavelmente esmagado pela falta de exigência ética de uma boa parte dos portugueses. Vivemos num país onde os políticos que preenchem funções da mais elevada responsabilidade nunca são punidos pela revelação de aspectos mais sombrios do seu comportamento moral ou até pela demonstração cabal de actos criminosos. Basta recordar a forma como  os eleitores deram vitórias eleitorais generosas a figurões como Fátima Felgueiras, Isaltino Morais ou Valentim Loureiro, e está tudo dito sobre o elevado sentido de responsabilização ético-política que habita a cabecinha de muitos dos nossos conterrâneos. Embora seja bastante provável que Cavaco Silva não tenha incorrido em qualquer ilícito criminal, foram aduzidos dados mais do que bastantes para levantar dúvidas fundamentadas sobre a sua transparência e a qualidade moral de vários dos seus actos, os quais, sendo do foro privado, nem por isso deixam de ter impacto e relevância no plano público e político. Porém, nada disso pareceu incomodar um grande número de eleitores.

Sabe-se, de resto, como diversos comentadores encartados se apressaram a classificar de «campanha negativa» ou «negra» a tentativa de escrutinar certos gestos menos límpidos de Cavaco Silva. Ora, se houve aqui algo de «negativo» ou «negro» terá sido o facto, demasiado gritante, de apenas agora, durante o período da campanha eleitoral, terem sido levantadas suspeitas acerca do carácter e do comportamento de Cavaco Silva e se ter encetado uma investigação jornalística a seu respeito, quando se sabia, desde a publicação de uma já longínqua notícia no «Expresso», que havia motivos para escavar um bocadinho mais na praia do Excelentíssimo Presidente.

Isto esclarece-nos, por sua vez, sobre o tipo de jornalismo praticado em Portugal. Foi preciso que o partido no governo, por motivos de mero interesse eleitoralista, atiçasse essa mesma investigação para que ela fosse efectivamente desencadeada.

Agora, com Cavaco reeleito, podemos estar certos de que tudo irá morrer, e que as suspeitas regressarão à primeira gaveta circunspecta que apareça, apesar dos vários detalhes que ficaram por clarificar.

Entretanto, existe um traço comum a unificar, de modo deprimente, as falcatruas do BPN, a compra e venda das acções de Cavaco Silva, a aquisição da sua moradia no bairro onde se aboletaram alguns mafiosos do cavaquismo e a forma, igualmente opaca e fedorenta,  como o governo de Sócrates telecomandou a investigação jornalística desses casos. Em tudo isso se nota o triunfo do chico-espertismo elevado ao estatuto de filosofia dominante de uma certa classe política.

(I)moral da história:

No país dos chico-espertos, todo o chico-esperto (ou aspirante a tal) está disposto a perdoar a um chico-esperto bem sucedido. E até a votar nele.

Observações pós-eleitorais – 2

Posted in Cenários da pequena política à portuguesa por APEDE em 23/01/2011

É claro que existe uma interpretação alternativa à que fornecemos no “post” anterior: que os portugueses reelegeram Cavaco Silva como Presidente da República porque, desde que há eleições democráticas para essa figura do Estado, nunca nenhum presidente deixou de ser eleito para um segundo mandato.

Mas…

… isso revela mais maturidade política do que aquela que atribuímos ao «bom povo português»?…

Observações pós-eleitorais – 1

Posted in Cenários da pequena política à portuguesa por APEDE em 23/01/2011

Como era previsível, Cavaco Silva ganha à primeira volta. Aparentemente, nada de novo na frente ocidental.

E, contudo, é essa previsibilidade que necessita de ser questionada. O facto de tantos portugueses – pese embora os números maciços da abstenção – estarem dispostos a dar o seu voto para o cargo presidencial a um homem com as características de Cavaco Silva merece alguma reflexão.

Com efeito, já muito se escreveu a propósito do perfil salazarento de Cavaco. Não porque nele habite um potencial ditador fascista, mas pelas suas inclinações autoritárias – amplamente ilustradas durante a sua passagem pelo governo -, a resistência, por ele mesmo publicitada, ao exercício da dúvida e, por conseguinte, o apego a posturas dogmáticas, a aura de “mestre das Finanças” e de inacessível Senhor Professor – algo que continua a granjear admirações num povo que permanece basicamente inculto e servil perante a ostentação dos títulos académicos -, uma aura que, paradoxalmente, aparece reforçada pelo culto das supostas «origens humildes», encenando uma mitologia igualmente cara ao «bom povo português» e que foi explorada até à náusea pelo próprio Salazar: o mito do homem que emerge do povo pobre para se elevar aos mais altos cargos da nação. Finalmente, cola-se a Cavaco Silva uma certa imagem de ascetismo, de seriedade ou até de rigidez, associada à figura de um Pai severo e distante, habilitado para mandar nos seus Filhos (o sacrossanto povinho). E o povinho, pelos vistos, gosta e quer mais.

Verificamos que os quase 40 anos de democracia em que temos vivido não foram suficientes para desabituar o «bom povo português» de prestar o seu culto a personagens políticas com o perfil do Chefe paternalista que Cavaco Silva tão bem encarna. Esta opção diz muito sobre quão longe ainda estamos de apreciar verdadeiramente a liberdade e as exigências que ela acarreta. Preferimos viver na sombra tutelar do Paizinho da nação, seja ele qual for. Daí a imensa fragilidade da nossa democracia, e a previsível deserção que ocorreria em muitas almas se o regime democrático fosse efectivamente ameaçado e se estivesse no limiar da restauração de um sistema autoritário ou semi-fascista. Esta gente trocaria de bom grado a liberdade – que, de resto, nunca soube fruir – pela miragem de uma segurança garantida pelo poder das botas cardadas. Especialmente se eles forem calçadas por um Paizinho austero. 


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