Reflexão em dia de greve geral
Vivemos hoje uma fase que é, talvez, única e inédita na história da luta dos povos pela sua emancipação e pelos direitos sociais.
O seu carácter novo reside nisto: enquanto toda a história anterior foi feita num crescendo de conquista de direitos que não estavam, antes disso, nem pensados nem consagrados, agora assistimos ao processo inverso: o da demolição e da retirada gradual desses direitos. Com uma agravante: o que dantes foi concebido como um direito é agora reescrito, no discurso hegemónico, como um privilégio ou uma regalia injustificada. E este último aspecto no ataque aos direitos sociais é, porventura, o mais terrível de todos. Porque desqualifica os direitos na cabeça de quem deles se vê privado, impedindo que as pessoas reconheçam essa privação e lutem contra ela. Porque torna muito mais difícil, se não mesmo impossível, reconhecer a necessidade desses direitos e a ilegitimidade da sua ausência.
A regressão que estamos hoje a sofrer não se dá apenas no usufruto dos direitos sociais. Dá-se também na capacidade colectiva de pensá-los e de exigi-los.
Chama-se a isto ideologia dominante.
Em Portugal, ela está a ter uma tremenda eficácia.
Por que é que os partidos de esquerda e os sindicatos não são capazes de lutar, com eficácia, pelo sucesso de uma alternativa como esta?
Jorge Bateira, do blog «Ladrões de Bicicletas», com o qual tivemos uma breve, mas simpática, troca de mensagens numa altura em que nos surgiu a ideia maluca de construir um novo movimento social, publicou ontem, no jornal “I”, um artigo que nos parece da maior relevância. É todo um programa. Um programa que a chamada «esquerda» e as centrais sindicais bem podiam inscrever nas suas agendas, fazendo tudo ao seu alcance para que ele tivesse condições políticas de concretização.
Sabemos que esse programa não tem a revolução escondida nas suas dobras. Nem traz «amanhãs que cantam» com «socialismos reais» de péssima memória. É, tão-só, uma maneira de pôr o capitalismo a funcionar na Europa, restringindo os movimentos especulativos e o poder do capital financeiro, garantindo o crescimento económico, o emprego e afastando o cenário de depauperação maciça das classes médias.
Acham pouco? Então olhem para o Brasil e roam-se de inveja.
Entretanto, aqui fica o texto de Jorge Bateira (para ver se o pessoal pensa mais e melhor):
Nas televisões a pergunta tornou-se um ritual: mas há alternativa? Em causa está o unânime reconhecimento de que o governo impõe ao país uma política cruel em nome da vaga esperança de que um dia a economia voltará a crescer sem novo endividamento. E, à boleia da austeridade selvagem e inútil, o governo aproveita a oportunidade para reconfigurar a sociedade portuguesa segundo o modelo neoliberal anglo-saxónico sem que o país tenha voto na matéria. Pois bem, a minha resposta é “Sim, há alternativa”.
Quando digo que há alternativa refiro-me à estratégia de um governo determinado a defender o interesse nacional, face à UE e face ao bloco central dos negócios que recruta cúmplices entre os agentes do Estado. Um governo decidido a romper com os preceitos da doutrina neoliberal consagrados no Tratado de Lisboa. Um governo que não está à vista, é certo, mas um governo que os portugueses vão ter de eleger se quiserem mesmo evitar um empobrecimento geral por longas décadas.
Imaginemos então que emerge uma nova força política, um partido com características de movimento social. Esta força política defenderia no seu programa uma estratégia global de saída da crise e de desenvolvimento do país, uma alternativa que a esquerda tradicional, limitada às lutas de resistência, tem grande dificuldade em formular. Do seu programa constaria a decisão de romper com o memorando da troyka e a intenção de não respeitar as normas comunitárias que impeçam a execução da estratégia de desenvolvimento de que o país precisa. Recordo que esta política de desobediência não poderia ser travada porque os Tratados não previram qualquer procedimento de expulsão de um membro da zona euro.
Um governo liderado por este partido produziria uma convulsão na UE. O país perderia o financiamento comunitário, pelo que a primeira decisão a tomar seria a retirada do Banco de Portugal do sistema europeu de bancos centrais acompanhada da ordem de financiar o défice orçamental. Ao mesmo tempo, decretaria a nacionalização temporária dos bancos e o controlo estrito dos movimentos de capitais de curto prazo para travar a especulação. O serviço da dívida pública seria suspenso até se concluir uma auditoria. Mas o país permaneceria na zona euro.
É fácil imaginar o horror que causaria na Alemanha a criação de moeda fora da tutela do BCE. As tensões políticas, já bem visíveis, tornar-se-iam então insuportáveis. Cansada de tentar resolver a crise do euro sem gastar nem mais um cêntimo, a Alemanha, acompanhada por meia dúzia de países, acabaria por abandonar o euro e criar um “euro-marco”. Ficaria assim aberto o caminho à transformação da zona euro, agora “euro-sul”, designadamente a passagem do euro a uma moeda bancária comum destinada a pagamentos externos. De forma organizada, as moedas nacionais seriam reintroduzidas e ligadas à moeda comum por câmbios flexíveis. Uma desvalorização do novo escudo, a introdução de um IVA muito agravado para bens de consumo duradouro importados, a reposição dos rendimentos que foram retirados à função pública e uma reforma fiscal redistributiva dos rendimentos mais elevados, incluindo os do capital, para os cidadãos mais pobres, criariam as condições iniciais necessárias à retoma do crescimento no curto prazo.
Como se vê, a alternativa ao empobrecimento por décadas não é necessariamente a saída do euro, como também não é apenas a resistência popular. Dir-me-ão que a alternativa é um exercício de imaginação. Pois seja, mas então vejamos. Dentro de pouco tempo, a Itália concluirá que não pode pagar os juros do mercado. Qual é a fonte de financiamento que lhe resta para além do Banco de Itália?
A Cartilha do Bom Sindicalista ou a “Teoria da Cassete” – um texto de José Manuel Faria
A Cartilha do Bom Sindicalista ou a “Teoria da Cassete”
Ponto 1 – Na abalizada visão de certos “fundamentalistas” do sindicalismo-que-temos, os dirigentes sindicais nunca são passíveis de ser criticados (sejam quais forem as asneiras que pratiquem), antes pelo contrário!!!
Ponto 2 – Os ignaros que se atreverem a denunciar as estratégias erradas desses deuses do Olimpo (verdadeiros dinossauros do sindicalismo-que-temos) são sempre mimoseados com os mais desprezíveis epítetos e considerados abaixo de gente.
Ponto 3 – As lutas e movimentações da classe SÓ podem ser concebidas, dirigidas e levadas a cabo sob a égide das referidas divindades. Como corolário, TODAS as iniciativas que não provenham do Olimpo serão necessariamente boicotadas e esvaziadas independentemente do seu eventual mérito, seja por que meios forem….
Ponto 4 – Os dirigentes sindicais (e partidários) nunca devem reconhecer os seus erros nem fazer qualquer autocrítica, mesmo perante manifestas derrotas!!!
Ponto 5 – A evidente subordinação desses dirigentes às mais mesquinhas políticas e interesses partidários é em si mesmo um bem supremo a prosseguir por todos os meios.
Ponto 6 – Resulta óbvio desta filosofia que, sempre que os dirigentes se recusem avançar com formas de luta concretas e incisivas, pactuando ativamente com o inimigo, as bases devem aguardar serenamente melhores dias com aquele espírito de rebanho que caracteriza a ideologia partidária subjacente.
Ponto 7 – É do maior interesse para a classe que, devido às excecionais qualidades evidenciadas por esses grandes líderes, eles se mantenham no desempenho dos seus altos cargos pelo maior número de anos (décadas), manobra bem escorada na blindagem dos estatutos.
Ponto 8 – A prática de referendos e plenários vinculativos para legitimar as decisões mais importantes como acordos, memorandos e formas de luta avançadas é considerada algo de subversivo e perigoso, embora por vezes necessário. Tal só deverá eventualmente realizar-se (a título meramente pontual) se, e só se, o resultado esperado coincidir com a decisão já previamente tomada no “Olimpo”.
Eis o retrato do sindicalismo-que-temos. Será que vamos mantê-lo? Está na nossa mão mudar o panorama!!!
A armadilha em que nos deixámos cair
Com a sua contundência habitual – aquela que torna altamente improvável que algum político do centrão o venha a convidar para ministro -, Santana Castilho abordou, nesta sua última crónica, um tema essencial: o vínculo profundo que liga o conceito de avaliação do desempenho a um modelo despótico de gestão que a ideologia neoliberal dominante transferiu do mundo empresarial, onde nasceu, para universos laborais e institucionais originalmente orientados para a prestação de serviços sociais cujo fim último não é (não deveria ser) a produção de lucros com vista à acumulação de capital.
No território das empresas, a avaliação do desempenho tem sido um notável mecanismo de coerção sobre os trabalhadores, dominados pelo jugo das metas e dos objectivos de produção. Muitas vezes arbitrariamente definidas e impossíveis de atingir, essas bitolas são, ainda assim, impostas como forma de manter quem trabalha sob a pressão permanente do patamar inalcançável. Inculcada a ideologia do sucesso, supostamente quantificável e mensurável à luz dos ditos objectivos e metas, a impossibilidade de as realizar é vivida pelo trabalhador como fracasso pessoal e como culpa. No quotidiano despótico das empresas, a violência destes dispositivos de poder tem conduzido a um aumento exponencial das doenças nervosas e até das taxas de suicídio, particularmente obscenas em casos que foram denunciados no país de Sarkozy.
Já o dissemos antes e agora repetimo-lo, movidos pelo texto de Santana Castilho: a introdução deste conceito de avaliação para aferir a qualidade do desempenho docente, feita pela mão de José Sócrates e Maria de Lurdes Rodrigues, e agora retomada por Nuno Crato, veio inscrever no exercício da profissão de professor o pior das estratégias de poder e de submissão usadas nas empresas.
E o erro fatal em que os professores – bem como os seus representantes sindicais – se deixaram cair foi precisamente o de aceitarem a inevitabilidade desta ideia de avaliação, como se de uma evidência se tratasse para a qual não haveria alternativa credível. Fragilizados perante a propaganda anti-docente montada pelos agentes do governo e pelos serventuários que regurgitam o que passa por opinião pública, os professores – todos nós – caíram na armadilha e cederam à chantagem. Capitularam face à imposição de um modelo de avaliação por «metas e objectivos», com receio de que a “opinião pública” pensasse que, afinal, os professores não queriam ser avaliados – o que, hoje em dia, parece quase um crime anti-social.
Divergir do rebanho traz sempre os seus riscos. Mas também acarreta as suas recompensas, às vezes inesperadas. Talvez tenha chegado o tempo de afirmar muito claramente, sem medo de escandalizar os nossos queridos conterrâneos, que, se a avaliação é esta coacção imbecil, então os professores não querem mesmo ser avaliados.
A terrível ironia disto…
… é que não faltam soluções para a nossa crise de endividamento, alternativas ao programa de recessão e de miséria acoplado à “troika” (palavra irritante) do FMI. O problema é que essas soluções andam a ser sistematicamente rasuradas do discurso mediático, o qual afina quase todo por uma só bitola: a imposta pelos donos dos “jornalistas” e dos “opinadores”.
Veja-se, por exemplo, mais esta solução que poderia perfeitamente estar a ser ponderada pelos nossos “dirigentes” políticos.
Rompendo com um tabu
Vale a pena ler esta entrevista, mesmo sabendo que o entrevistado tem uma agenda que não é propriamente compaginável com os interesses de Portugal.
Hoje, mesmo na cena internacional, há cada vez mais vozes a admitir uma nova inevitabilidade (bem distinta da defendida pelos apologistas das “receitas” do FMI): a renegociação da dívida portuguesa e um “perdão” parcial da mesma, no pressuposto de que, mesmo com toda a “austeridade” em cima, o país nunca terá condições para pagá-la integralmente.
Mas ainda são poucas as vozes que ousam pensar noutro cenário: o abandono do euro por parte de Portugal.
Ora, o que diz o entrevistado acima referido – ou, para mal dos nossos pecados, o que diz aquele senhor finlandês de ar porcino que dirige um partido de extrema-direita – tem efectivamente uma base factual: Portugal só teve a perder com a adesão ao euro, e, nos tempos mais próximos, só terá a perder se continuar com essa moeda.
Lembremos que essa adesão correspondeu a um daqueles projectos pacóvios, tão típicos das nossas “elites”, pelos quais os portugueses são levados a acreditar que pertencem ao grupo dos países mais desenvolvidos. Na altura em que se deu a adesão, o “slogan” era que Portugal tinha passado a integrar o «pelotão da frente». Lembram-se?
Hoje vemos o que essa ilusão identitária nos custou. João Ferreira do Amaral, um dos raros economistas que resistiu aos cantos de sereia e um dos poucos que admitem a possibilidade de sairmos da moeda única, mostrou que a apreciação excessiva do escudo que acompanhou o processo da nossa adesão ao euro levou a que, entre 1991 e 2006, a economia portuguesa registasse uma perda de competitividade na ordem dos 10,3% (dentro de uma perda total de 17,3%, explicável por outros factores, entre os quais não está, porém, a evolução salarial que os liberalóides gostam de apontar como a raiz de todos os nossos males).
Ou seja, uma moeda forte como o euro pode convir a um país como a Alemanha, cuja capacidade exportadora não está dependente das taxas de câmbio. Mas, para um país como Portugal, com as insuficiências crónicas do seu aparelho produtivo, a posse de uma moeda forte, sobre a qual ainda por cima não tem qualquer soberania para poder desvalorizar, tem-se traduzido por uma perda sistemática ao nível da competição no mercado das exportações.
A fantasia de termos sido equiparados a uma Alemanha, em termos de moeda, não passa disso mesmo: de uma fantasia das nossas “elites” político-financeiras, que não hesitaram em destruir as condições de um crescimento económico sustentado, que assistiram impávidas à destruição da nossa agricultura e ao definhamento de uma indústria já de si anémica, que aceitaram que Portugal se tornasse basicamente consumidor de produtos importados, e que se lançaram na grande negociata do acesso fácil ao crédito (outro efeito perverso do euro, que nos garantiu, de um dia para o outro, um preço baixo do dinheiro).
São essas mesmas “elites” que hoje choram lágrimas de crocodilo perante o enorme desequilíbrio da nossa balança comercial. E são também elas que vêm clamar pelo crescimento económico, pelo aumento da produtividade, pela necessidade de estimularmos a produção de bens transaccionáveis – em vez de continuarmos a apostar na construção civil, nos serviços e no negócio do mega-retalho. Como se, no passado que nos conduziu aqui, não tivessem sido essas “elites” a tudo fazer para que nada do que hoje reclamam fosse possível.
A saída do euro pode ser, de facto, tremendamente dolorosa. Pode até ser, no imediato, um autêntico cataclismo. Francisco Louçã, por exemplo, não defende essa solução no seu último livro, argumentando que semelhante emenda nos sairia muito pior do que o soneto: juros repentinamente mais elevados, perda abrupta do poder de compra, efeito recessivo prolongado que levaria a uma depressão. E isto sem que o aumento das exportações, decorrente da desvalorização de uma moeda sobre a qual teríamos recuperado a soberania, fosse suficiente para compensar todas essas catástrofes.
Uma coisa é certa: com ou sem moeda única, os que não pensam pela cartilha neoliberal inclinam-se cada vez mais para propostas de ruptura com as regras asfixiantes da zona euro.
A aceitação da presença do FMI em Portugal é apenas prolongar a caminhada absurda num beco sem saída.
As grandes mentiras
Os gráficos que mostramos no nosso penúltimo “post” permitem desmontar uma das grandes mentiras que nos andam a impingir de algum tempo a esta parte e que, nestes últimos meses, é matraqueada a um ritmo diário. Consiste essa mentira na tese de que o chamado Estado Social é intrinsecamente insustentável e que, por isso, tem de “emagrecer” (leia-se: ser sujeito a todo o género de privatizações, ficando os serviços do Estado e as prestações sociais reduzidos ao nível da esmola para os mais pobres dos pobres).
Ora, quando olhamos os ditos gráficos, verificamos que o Estado-Providência, na Europa como nos Estados Unidos, foi constituído e consolidado precisamente durante o período em que a grande burguesia teve de ceder uma parte substancial dos seus rendimentos a favor do crescimento de uma classe média, isto é, a favor do acesso dos trabalhadores a um melhor nível de vida. Essa redistribuição da riqueza deu-se não só através do aumento salarial, mas sobretudo através do aumento das prestações e dos serviços sociais do Estado. E esse aumento foi financiado, obviamente, por via fiscal, na base de uma tributação assente nos impostos progressivos: o capital foi então taxado de forma a que o Estado pudesse fornecer serviços universais decentes para todos os cidadãos.
A treta da falência do «Estado Social» só começa a ser propalada a partir dos anos 80, quando se iniciou uma nova política que reduziu drasticamente as contribuições fiscais dos mais ricos. A isso acresceu a multiplicação de toda uma série de mecanismos de fuga ao fisco para os mais elevados rendimentos – sobretudo por via dos «paraísos fiscais» – que só vieram aprofundar os desequilíbrios e os famosos défices orçamentais dos Estados dos países desenvolvidos.
Com uma dependência cada vez mais exclusiva dos impostos sobre os rendimentos do trabalho – estando os do capital devidamente “isentados” de participar no «contrato social» -, é óbvio que o Estado se tornou gradualmente insustentável. Mas essa insustentabilidade não decorre de uma qualquer fatalidade inerente à natureza “gastadora” do Estado-Providência. Ela foi deliberadamente provocada por governos e instituições transnacionais (como a União Europeia) empenhados em fomentar a drenagem maciça dos rendimentos de quem trabalha para os ricos que nada produzem.
E aqui deparamo-nos com outro “argumento” usual na conversata liberalóide: é preciso reduzir os impostos sobre os grandes rendimentos, pois só assim se liberta o capital necessário ao investimento, à criação de empresas que irão dar emprego, blá-blá, blá-blá. Outra mentira. Na verdade, o que está a acontecer desde a década de 80 é que os mais elevados rendimentos, livres da respectiva carga fiscal, não têm sido predominantemente aplicados na criação de emprego, mas na especulação financeira, a mesma que gerou a crise mundial responsável pelo buraco em que nos encontramos. É que, com essa especulação, é possível aumentar os lucros de forma muito mais rápida e vertiginosa do que com investimento realmente produtivo, cujo retorno é mais lento e incerto.
Por tudo isto, quando alguém vier outra vez com a tanga da falência inevitável do Estado, é bom pensar no que esse discurso efectivamente oculta.