Um SIM inequívoco à recuperação integral do tempo de serviço dos professores – Jornal Expresso (27/01/23)
A recuperação integral do tempo de serviço é uma questão de justiça, de princípio e de respeito.
De justiça, porque não podemos viver num país onde coexistem dois sistemas de recuperação do tempo de serviço, que geram injustiças e desigualdade entre profissionais do mesmo ofício. Sendo certo que os arquipélagos são regiões autónomas, não é aceitável termos professores da mesma Escola Pública em situações tão diferentes apenas porque uns lecionam nos arquipélagos e outros no continente. Aos primeiros foi reconhecido o direito à contagem integral do tempo de serviço e aos últimos apenas uma pequena parcela, contrariando o princípio da igualdade consagrado na Constituição, com óbvios efeitos discriminatórios, quer no salário atual, quer na reforma futura.
A contagem integral do tempo de serviço é ainda uma questão de justiça, pois o reposicionamento dos docentes que entraram na carreira após 2011, e aos quais foi contabilizado todo o tempo de serviço não congelado, fez com que se verificassem ultrapassagens de muitos outros colegas que, já estando na carreira antes de 2010, viram vários anos do seu tempo de serviço perdidos na transição entre as várias estruturas de carreira. Estas injustiças só se resolverão com a recuperação integral do tempo de serviço congelado, para todos, e com um correto reposicionamento na carreira.
Mas essa recuperação é também uma questão de princípio e de respeito porque esses anos foram efetivamente trabalhados, nas condições que se conhecem, assegurando o direito dos alunos a uma educação plena, desarmando desigualdades, incluindo todos, rasgando horizontes e semeando futuro. Que moral têm os governantes para dizer aos professores, e a outros funcionários, que não lhes podem pagar o que é devido, quando pagam até o que não devem e a quem não se justifica, e ainda se esquecem que o fizeram? Nesta teia macabra de favorecimentos, compadrios, corrupção e incompetência, por onde o dinheiro vai escorrendo, importa dizer aos pequenos políticos que temos tido, tão afastados da ética republicana, que proclamam mas não praticam, que os professores estão exaustos, frustrados, revoltados! E que muitos partem, outros não voltam, e haverá cada vez menos! E sem professores motivados não há educação, não há progresso, nem futuro!
Se este problema não se resolver, vamos continuar a ter uma classe docente zangada, sentindo-se traída e defraudada, com a certeza do dever cumprido, mas de relações cortadas com os governantes e profundamente descontente, sendo que as migalhas colocadas em cima da mesa terão sempre um sabor amargo.
Termino com um excerto de um texto enviado por uma ex-aluna, jovem ativista e cidadã de corpo inteiro: “Esta luta é dos professores e de todos os outros funcionários da Escola Pública, mas tem de ser também a luta de todos nós. Um país que valorize a Educação e o seu futuro não pode ser um país que despreze e mantenha em condições precárias os seus professores.”
E eu concordo tanto contigo, Madalena!
Um beijinho do teu professor.
Ricardo Silva
(Texto publicado na coluna DUELO do jornal Expresso, dia 27 de janeiro de 2023)
O desperdício educativo das pseudo-reformas da educação
Para além de tudo o que já foi mencionado relativamente a esta revisão-que-afinal-já-não-é-uma-reforma da estrutura curricular, para além do drama pessoal de muitos professores que vão perder o emprego devido a uma mudança feita exclusivamente com esse propósito, há ainda que referir outro aspecto – menos dramático, mas que afecta igualmente o quotidiano profissional dos docentes e a qualidade do ensino praticado.
Referimo-nos ao desperdício de trabalho e de saber acumulado que se dá de cada vez que o Ministério se lembra de impor este tipo de alterações, quase sempre de forma arbitrária, atabalhoada e sem ouvir os professores (e este é um “ponto de honra” que os vários ministros fazem questão de cumprir escrupulosamente).
Com efeito, eliminar disciplinas em planos curriculares, ou privá-las de um número substancial de horas, significa que muito trabalho realizado pelos professores – preparação de materiais didácticos, fichas formativas, testes, etc., etc. – vai para o caixote do lixo na impossibilidade de ser aproveitado noutros contextos (visto que os conteúdos programáticos mudam por completo ou são simplesmente suprimidos).
Por vezes, trata-se de trabalho intenso, mas em torno de programas disciplinares que não chegam a durar mais de dois ou três anos. Impossível aferir ou melhorar práticas, impossível transferir conhecimentos de um ano para o outro, impossível sedimentar experiências.
O ensino em Portugal tem andado assim, aos solavancos e aos soluços, à medida dos caprichos “reformistas” de ministros que confundem o intuito de deixar obra feita com transformar em ruínas o que estava a ser construído.
Há partes do edifício que mereciam ser demolidas? Sem dúvida. Mas essas, curiosamente, permanecem de pé.
Nuno Cortes
Só agora arranjámos tempo para nos determos na entrevista dada por Nuno Crato ao jornal Público. Chegamos em último lugar, mas não perdemos grande coisa. O conteúdo das declarações do ministro é, de facto, confrangedor.
Se ainda restassem dúvidas sobre o papel de Nuno Crato neste governo, a entrevista tem, pelo menos, o mérito de as desfazer. Nuno Crato não é ministro da Educação e Ciência. É ministro dos cortes cegos – e absolutamente brutais – na Educação e Ciência para ajustar o orçamento desse sector ao cubículo exíguo que lhe está destinado pelo programa da “troika” e pelo seguidismo canino de um governo apostado em ir ainda mais longe no austeritarismo imposto aos portugueses.
Nuno Crato é, portanto, uma amanuense dos cortes. Em vez dele, poderia lá estar qualquer outro. Até mesmo um “robot”. Que ele se preste a semelhante função diz muito da sua falta de espessura política e ética. Mas podemos sempre acrescentar: o que se poderia esperar de quem aceitou integrar um governo cujo programa se resume, no essencial, ao de uma comissão liquidatária dos serviços públicos, dos direitos sociais e laborais?
(Nota à margem: os apoiantes de Santana Castilho compreenderão agora o equívoco de imaginarem que ele poderia ocupar o lugar preenchido por Nuno Crato?)
Talvez Nuno Crato imaginasse ser capaz de resolver a quadratura do círculo (o que, em alguém com formação em matemática, seria sempre estranho). Talvez pensasse ser possível conciliar cortes orçamentais que asfixiam por completo a Escola Pública com reformas cirúrgicas que devolveriam alguma racionalidade ao sistema educativo.
Só que essa hipótese, já de si delirante, é praticamente anulada pelo conteúdo das suas declarações na entrevista. Nuno Crato mostra não ter uma única ideia interessante (ou sequer consistente) a propor no tocante ao sistema de ensino em Portugal. Quando não está ocupado a justificar cortes e reduções, tudo o que sai da sua boca são generalizações vazias, que servem apenas de paupérrima compensação retórica para uma acção essencialmente centrada em contas de mercearia, todas desembocando na redução drástica do pessoal docente – afinal, o objectivo maior das medidas descritas na entrevista. Pensamento estruturado sobre política educativa – ou política de ciência – é coisa que não se vislumbra.
Diga-se, aliás, que até mesmo na questão dos números a entrevista revela insuficiências gritantes. No que respeita às afirmações de Nuno Crato sobre a poupança supostamente resultante da supressão do Estudo Acompanhado, o Paulo Guinote já desmontou aqui as contradições do ministro.
Esprimidas e enxutas, as declarações de Nuno Crato poderiam limitar-se a isto:
«Quase metade (46,7 por cento) do pessoal da administração central está no Ministério da Educação. É um valor extraordinário. Isso significa que as reduções têm de ser, em grande parte, em pessoal e que têm de se reflectir na educação. Não há nenhum menosprezo pela educação.»
Claro que não. Há só menosprezo por quem trabalha na educação. Como se esta pudesse ser valorizada em tal base.
Mas note-se a completa arbitrariedade deste pseudo-argumento, que o Paulo Prudêncio escalpelizou aqui. Nuno Crato nem sequer se preocupa em saber se a referida percentagem, atirada levianamente para o ar, corresponde ou não a necessidades efectivas do sistema. Que importa isso, quando é preciso atingir mais de 800 milhões de euros em cortes?
Por isso, a entrevista revela um só resultado palpável e dramático:
contrariamente aos hipócritas de serviço, que continuam a afirmar que a Função Pública tem o posto laboral assegurado, vem aí muito desemprego para os professores. E não apenas para os contratados. Os 1858 professores com horário zero, mencionados por Nuno Crato na entrevista, têm cada vez mais o destino selado. E tudo aponta para que esse número venha a ser engrossado com a reestruturação curricular do Ensino Básico, a qual visa unicamente reduções substanciais no pessoal, sem que tenha por detrás qualquer pensamento estratégico para a Educação.
A conclusão está à vista (estava-o antes mesmo de o governo tomar posse):
Contratados por um ano ou contratados por tempo indeterminado, hoje somos todos contratados a prazo.
O governo de Nuno Crato quer fazer-nos aceitar que a precariedade é a condição normal do trabalhador. Cabe-nos mostrar que não é assim. Que não tem de ser assim.
O grau zero da decência política
Notícia no Jornal de Notícias on-line:
O ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato, garantiu, esta quinta-feira que o Governo “não vai contratar professores que não sejam necessários”. A falta de dinheiro e de necessidades justificam a não contratação. “Há muitas pessoas dedicadas que gostariam de ser professores mas que não podem sê-lo neste momento. Não podemos prescindir de grande rigor nas colocações“, frisou, insistindo que o ano lectivo arrancou “com normalidade” apesar dos partidos da oposição o negarem.
O senhor ministro pode tentar, até das formas mais abjectas, sacudir a “água do capote”, mas os professores continuarão a denunciar aquilo que é claríssimo: não se trata de pedir emprego, não se trata de esmolar um contrato, trata-se de defender a verdade e a justiça num concurso público. Horários anuais não podem, não devem, surgir como temporários, e professores com superior graduação não podem, não devem, ficar desempregados, sendo ultrapassados por colegas com menor graduação. É apenas e só uma questão de justiça, de transparência e rigor no processo de colocação. O Ministério da Educação, ao contrário do que afirma Nuno Crato, prescindiu do rigor. E os professores apenas exigem a reposição da verdade e da justiça. O Ministério da Educação tem de assumir os erros e corrigi-los, na medida do possível. É uma questão de decência política.
Estas lamentáveis declarações do Ministro da Educação, supracitadas, vêm ainda dar mais força, e razão de ser, ao protesto que um grupo de professores contratados e desempregados continua a protagonizar e que teve hoje um novo e importante desenvolvimento, com a sua presença (que se prevê ir continuar noite fora) no Palácio das Laranjeiras, onde funciona o gabinete do MEC.
Últimos desenvolvimentos podem ler-se nesta notícia na edição on-line do Diário de Notícias.
A APEDE saúda, naturalmente, os colegas em luta, pela sua iniciativa, e manifesta o seu apoio a esta iniciativa.
Péssimos sinais
Já por várias vezes criticámos aqui o modelo, actualmente em vigor, de «educação de adultos». Mas o que esta notícia mostra é um Ministério da Educação a manter (e a reforçar) a sua velha tradição de desprezo pelas pessoas: pelos professores e pelos alunos.
O programa do nosso descontentamento – 3
Continuemos a penosa missão de desmontagem do programa do governo PSD/CDS para a Educação.
Esse programa repete, em várias passagens, a ideia de «reforçar a autoridade do professor». É uma daquelas declarações de princípio feitas para acariciar a “auto-estima” dos docentes. Afinal, que professor não quer ver a sua autoridade «reforçada»?
Acontece que essa declaração, tal como aparece no programa do actual governo, é totalmente vazia. Pois não esclarece como é que essa autoridade vai ser reforçada, nem diz, na verdade, de que autoridade se está a falar.
A famosa «autoridade» do professor pode significar coisas muito diferentes. Pode referir-se à autoridade perante os alunos e, nesse caso, obedece a requisitos e a condições particulares, que tentámos enunciar num “post” já antigo. Mas também pode remeter para a autoridade social do professor no espaço público ou cívico. Como pode reportar-se à autoridade do professor perante os seus colegas ou pares, à autoridade perante os pais e demais encarregados de educação, à autoridade face ao Ministério, etc., etc.
Acontece, porém, que todas estas várias dimensões da autoridade do professor estão minadas, à partida, no programa de governo. Este vem confirmar e aprofundar mecanismos nas escolas que só contribuem para cercear, desmentir ou achincalhar as condições em que essa autoridade se poderia exercer. Como o Octávio apontou aqui, que autoridade docente, individual ou colectiva, pode sobreviver num cenário em que se pretende reforçar as competências dos directores das escolas? Competências que, sabemo-lo bem, se prestam já hoje a usos suficientemente discricionários e tendencialmente despóticos. Dois dedos de testa bastam para perceber que não é possível conciliar o «reforço» da «autoridade do professor» com o «reforço» das «competências dos directores».
E isto leva-nos direitinhos a um dos vícios maiores do programa com que Nuno Crato vai governar. Conforme previmos e denunciámos em “posts” anteriores, o PSD e o CDS, agora juntinhos no governo, nunca pretenderam mexer numa vírgula do modelo de administração escolar cozinhado por esse grande partido “de esquerda” que é o PS. Tal modelo serve às mil maravilhas para instalar uma cultura de subserviência e de “respeitinho” entre os professores, subordinados a chefias quase irremovíveis, escolhidas com base em influências que escapam, por completo, ao controlo democrático de que os docentes se viram privados. Essas chefias, que nada devem a professores que, de facto, não as elegeram, vão continuar a representar, acima de tudo, os interesses políticos do Ministério no interior das escolas. E serão as primeiras a aplicar, diligentemente, todas as medidas do programa da “troika” que visem reduções arbitrárias de “custos”, estrangulamentos ainda maiores na carreira docente, cortes no pessoal, etc.
Um modelo de administração escolar exclusivamente assente em direcções unipessoais é o sonho de qualquer estadista apostado em impor a política do austeritarismo dentro do sistema de ensino.
Perante isso, nenhum blá-blá sobre a autoridade do professor consegue persuadir os mais incautos.
O programa do nosso descontentamento – 2
Quando chegamos à parte do programa do governo dedicada à carreira docente, o caldo, já de si pouco apetitoso, fica consideravelmente entornado.
Em primeiro lugar, a redução dos professores (ou de outros profissionais quaisquer) a «recursos humanos» indicia essa intrusão ideológica do pior “economês”. E nós sabemos bem tudo o que está implicado nesse conceito: os «recursos humanos» são menos «humanos» do que «recursos», e por isso são eminentemente descartáveis. É preciso não esquecer que o programa para o ensino está cercado, por todos os lados, pelo “resto” do programa de governo…
Mas então o que diz ele sobre a carreira docente? Duas coisas. A primeira reproduz uma “tese” já presente no programa do PSD: «Simplificação do Estatuto da Carreira Docente a par do estabelecimento de medidas que reforcem as competências dos directores de escola.» Frase singela que fecha, a cadeado, qualquer veleidade de alterar o ECD e de acabar com o modelo de administração autoritária e antidemocrática das escolas. Se algum professor esperava algo de diferente do PSD e do CDS, é caso para perguntar que substâncias ilegais esse colega andou a consumir nos últimos meses…
A outra ideia “brilhante” é, honra lhe seja feita, imputável a Nuno Crato, que fez gala em divulgá-la aos quatro ventos como o alfa e o omega da qualificação da profissão docente:
«Uma selecção inicial de professores que permita integrar no sistema os mais bem preparados e vocacionados designadamente através da realização de uma prova de avaliação de conhecimentos de acesso à profissão.»
A este respeito, fazemos nossas as palavras do Paulo: que sentido faz sujeitar os professores a uma prova adicional de avaliação de conhecimentos depois de aqueles terem sido avaliados e aprovados numa licenciatura, num mestrado e num processo de profissionalização para a docência, todos efectuados em estabelecimentos do ensino superior tutelados, neste momento, pelo mesmo ministro que tutela o ensino básico e secundário? Não são esse ministro e o seu Ministério que certificam os cursos do ensino superior que os candidatos a professores frequentaram? A prova de acesso não é, nessas condições, uma completa redundância? E, se não for, não será então a mais acabada confissão de que o Ministério não possui um pingo de autoridade e de credibilidade?
O programa do nosso descontentamento – 1
Vamos lá então desmontar a coisa. Vai ser trabalho para vários “posts”, ainda que a escassa substância da parte relativa à Educação aconselhasse, provavelmente, um comentário mais expedito. Mas nós vamos levar o cinismo ao ponto de fingir que aquilo tudo é para levar a sério.
Assim sendo, comecemos pelos primeiros parágrafos. A sensação é imediata: grandiloquência e aquelas “boas intenções” que se afivela para disfarçar muita vacuidade. Exemplos:
«O Governo assume a Educação como serviço público universal e estabelece como sua missão a substituição da facilidade pelo esforço, do laxismo pelo trabalho, do dirigismo pedagógico pelo rigor científico, da indisciplina pela disciplina, do centralismo pela autonomia.»
«(…) Criar consensos alargados sobre o plano estratégico de desenvolvimento tendo como horizonte temporal o ano de 2030.»
«(…) Apostar no estabelecimento de uma nova cultura de disciplina e esforço, na maior responsabilização de alunos e pais, no reforço da autoridade efectiva dos professores e do pessoal não docente.»
Espremendo, não sai nada: blá-blá.
Depois lá vem a piscadela de olho à mui liberal “liberdade de escolha” das famílias que, como se verá mais à frente, parece não apontar (ainda?) para o famoso «cheque-ensino» (pois o tempo é de vacas esqueléticas e o Estado não dispõe de dinheiro para experimentalismos liberalóides):
«Desenvolver progressivamente iniciativas de liberdade de escolha para as família em relação à oferta disponível, considerando os estabelecimentos de ensino público, particular e cooperativo.»
Encerrado o blá-blá dos “grandas” princípios, surgem as medidas. E aqui há que dizer que as primeiras a serem enunciadas primam por um bocejante dejá vu:
«Definição de metas para a redução do abandono escolar, melhoria do sucesso escolar em cada ciclo e aumento da empregabilidade dos jovens, associando estas metas a princípios de rigor na avaliação, de exigência nas provas e de mérito nos resultados.»
Onde está a novidade disto? Não é o que as escolas andam já a fazer e que, em bom rigor, se traduz em impactos invariavelmente nulos nas práticas educativas? Todos os anos os órgãos das escolas – direcções, conselhos pedagógicos, departamentos – consomem boa parte do seu tempo e energia a elaborar e a discutir «metas», «objectivos», «projectos educativos» – lérias que se limitam a uma retórica estafada, inócua, inútil.
A verdade é que, dissipado todo esse fumo e as tais “boas intenções” de que está cheio o inferno dos professores, estes continuam, melhor ou pior, a tentar realizar o núcleo essencial da sua profissão: ensinar, preparar aulas, acompanhar os alunos (muitas vezes, demasiadas vezes, substituindo-se a famílias que eles não têm ou que, se têm, não deviam ter). Se há mais alguma coisa para além disso, é certo e garantido que as escolas não o descobriram. E o Ministério ainda menos.
Em seguida, aparece no programa de governo a ideia de «um sistema nacional de indicadores de avaliação da Educação, em linha com as melhores práticas internacionais, garantindo transparência e confiança aos cidadãos e incentivando as famílias a tomar decisões mais informadas no exercício da sua liberdade de escolha». Pode ser que estejamos a ver mal o filme, mas esta conversa cheira a qualquer coisa de parecido com os tão sobrevalorizados rankings. Um critério qualquer para hierarquizar os estabelecimentos de ensino e as famílias ficarem todas informadas. A pergunta impõe-se: mas, se assim for, é mesmo disso que a Educação precisa em Portugal? Com tanto de importante para fazer, o Ministério vai andar entretido a escalonar escolas? Áh, espera lá! É para os pais “escolherem” a melhor escola para os filhos! Mas há ainda alguém no planeta, para lá da seita de fanáticos de Milton Friedman, que verdadeiramente acredite em semelhante treta?
Finalmente, a única medida com conteúdo prático:
«Generalização da avaliação nacional: provas para o 4.º ano; provas finais de ciclo no 6.º e 9.º anos, com um peso na avaliação final; exames nacionais no 11.º e 12.º ano.»
Ainda assim, isto precisa de ser esclarecido. Temos aqui três conceitos aparentemente distintos: «provas», «provas finais com um peso na avaliação final» e «exames nacionais». Esta última expressão significa o retorno a exames de carácter eliminatório, ou remete para exames que, tal como as «provas finais», se limitam também a ter um peso na avaliação final? Se esta última hipótese for a correcta, para quê então tanta dispersão vocabular? Não era melhor usar um único conceito? Para um crítico do «eduquês» como “novilíngua” dispensável, não está mal, não senhor!
Por fim, a medida que se segue é deprimentemente idêntica ao que já vinha exposto no programa do PSD: «Reestruturação do Programa Novas Oportunidades com vista à sua melhoria em termos de valorização do capital humano dos Portugueses e à sua credibilização perante a sociedade civil.» Realmente é caso para perguntar, como o Paulo Guinote fez várias vezes, que teia de interesses se move à sombra das Novas Oportunidades para que semelhante aberração se mantenha intocada nos seus pressupostos…
Votaram nele, não votaram? Agora engulam!
PASSOS COELHO DIZ QUE GOVERNO PODE IR ALÉM DAS MEDIDAS DA “TROIKA”
O problema é que não são só os que votaram nele que terão de engolir as consequências trágicas dos seus devaneios neoliberais…
Educação: um desastre anunciado
Por incrível que pareça, houve professores (baseamo-nos em fontes bem colocadas) que engoliram o número que o primeiro-pantomineiro montou na sua conferência de imprensa de 3.ª feira: uau! Não vai haver cortes nos salários, nem cortes nos subsídios de Natal e de férias, nem despedimentos! Porreiro, pá!
Queridos colegas:
moderem o vosso entusiasmo. Façam o que o outro disse: não entrem em euforia.
Porque…
… o corte anunciado de 195 milhões de euros (cento e noventa e cinco, leram bem) para o sistema de ensino no próximo ano vai representar o maior desastre que se abateu sobre as escolas portuguesas desde o 25 de Abril.
Vocês, que pelos vistos gostam de passar dos cenários depressivos imaginados ao contentamento mais (enfim, utilizemos um eufemismo) ingénuo, comecem a fazer as continhas.
Façam o favor de juntar o número de 195 milhões de euros ao novo cenário laboral criado com a supressão dos quadros de nomeação definitiva. Então, já perceberam? Pois é. Juntem-lhe ainda a reorganização da rede escolar através dos reagrupamentos de escolas, com o «abaixamento das necessidades de pessoal» que tudo isso implica. O redimensionamento dos mapas de pessoal está aí ao virar da esquina. E ele significa isso mesmo: despedimentos.
Os cavalos também se abatem. E os professores igualmente.
Ainda há pouco ouvimos na SIC-Notícias o Professor Silva Lopes a perorar sobre esta redução brutal de custos na educação. Com aquela alegre inconsciência que os nossos economistas alardeiam quando falam do que não conhecem – o ensino -, dizia ele que até se podia ter ido mais longe nos cortes. E lá sacava do “argumento”: pois se em Portugal o rácio de professor por alunos é maior do que a média europeia! Logo, a solução Silva Lopes é: aumente-se o número de alunos por turma ou até (melhor ainda!) aumente-se o horário de trabalho dos professores. Áh ganda Silva! Por acaso, a Lurditas de ouro já fez bastante por isso. E por acaso o “argumento” do tal rácio é uma falácia, como qualquer professor de uma escola dos subúrbios de Lisboa ou do Porto pode confirmar.
Mas que importam estes “detalhes” factuais, quando se pode apertar um pouco mais o torniquete à volta dessa corporação de malandros que são os professorzecos? É despedi-los e pôr a trabalhar mais horas os sacanas que ainda restarem! Aqui está a solução para os problemas do ensino em Portugal.
Ninguém pense que, num quadro como este, vai haver margem de manobra para qualquer alteração de fundo relativamente ao cenário montado pela equipa de Maria de Lurdes Rodrigues. O modelo de gestão escolar unipessoal, por exemplo, está aí para durar. Pois os directores das escolas vão ser agentes fundamentais na política de redução drástica do pessoal docente nos estabelecimentos de ensino. Com professores de espinha cada vez mais dobrada, cheios de medo da sua própria sombra e apavorados com a hipótese de serem os próximos a “quinar”, sem qualquer ambiente propício à contestação e à revolta, os directores vão ter carta branca para redimensionar os mapas de pessoal à medida da sua discricionaridade, e vão usar isso como pressão adicional para se fazerem obedecer. Portanto, longa vida ao actual modelo de administração escolar!
O resto… Bom, o resto (avaliação do desempenho, carreira docente, concursos) é ainda um enigma. Mas é de esperar que em todos esses domínios se reforcem medidas e práticas que acentuem a precarização como norma e a estrita disciplinarização de professores cada vez mais reduzidos à condição de amanuenses do Ministério.
Ainda estão eufóricos?
Triste país este… tão mal servido de primeiro ministro (?!) e de jornalistas.
A uma pergunta dos jornalistas da RTP, nitidamente encaixada à força, para não dizer “encomendada” (e sem qualquer tipo de réplica ou contraditório após a resposta), sobre uma eventual decisão futura de Sócrates em retomar o actual modelo de ADD, em caso de vitória nas eleições, o primeiro-ministro respondeu afirmativamente, lamentando a sua revogação (e apelando ao PR para que trave a decisão do Parlamento) com uma frase “interessante” e absolutamente despudorada:
“Um sistema de avaliação consensualizado que estava a entrar na rotina das escolas.” (vídeo aqui.)
Perguntamos:
Consensualizado com quem? Pois… as tais assinaturas. Mas… e os professores, pá?
A entrar na rotina das escolas? E com que custos, pá? A troco de quê, pá?
Tem vergonha, pá!
A lista dos culpados
Diversos comentadores – quase todos situados à direita – andam a regozijar-se pelo facto de Sócrates estar em vias de ser afastado da governação do país.
E vêem nisso um sinal altamente positivo, na medida em que tal significa, segundo eles, que o principal responsável pelo descalabro das contas públicas e pela situação de desastre económico-financeiro em que Portugal mergulhou vai ser removido do poder, abrindo-se um novo ciclo político com governantes preocupados em salvaguardar o interesse público – subentende-se: governantes do PSD, pois é esse o partido “naturalmente” apto para suceder ao PS.
Há mesmo quem pense que, com o PSD de Passos Coelho no poder, uma lufada de ar fresco soprará nas escolas e as piores e mais aberrantes “reformas” socratinas no ensino terão, finalmente, o merecido destino do «caixote de lixo da história».
Perante estas opiniões, cabe dizer duas ou três coisas.
Primeiro: não sendo nós suspeitos da menor simpatia por José Sócrates, e concordando que ele foi o pior primeiro-ministro num país em que esse cargo já foi ocupado por gente do nível de um Pinheiro de Azevedo, importa sublinhar que Sócrates não é o principal responsável pelo estado em que Portugal se encontra. Por grande que tenha sido o seu contributo para isso.
No momento actual, o pior que nos pode acontecer é deixarmos que a nossa inteligência seja capturada por análises simplistas, armadilhadas por antolhos ideológicos.
Se Portugal está como está, tal se deve a razões de ordem estrutural que transcendem, em muito, o período de governação de Sócrates. Vejamos as principais:
– o facto de a integração de Portugal na União Europeia ter sido feita de molde a confirmar e a assegurar as desvantagens da nossa posição assimétrica face aos países centrais;
– o facto de a primeira década de presença portuguesa na CEE (depois União Europeia) ter sido marcada pelo completo desperdício dos fundos estruturais que afluíram até nós, e por decisões de política económica que apenas acentuaram o carácter periférico e atrasado do nosso tecido produtivo, apostando-se no desmantelamento da agricultura e em sectores de mão de obra desqualificada e com baixos salários como factor competitivo – destinado, como hoje se vê, a ser rapidamente ultrapassado;
– o facto, decorrente do acima exposto, de que o fim do modelo das indústrias baseadas em trabalho intensivo e salários de miséria não possa ser acompanhado pela transição para um modelo assente na produção de bens transacionáveis de alto valor acrescentado (nada se fez para isso);
– o facto de a adesão à moeda única ter aprofundado ainda mais as dependências de Portugal em relação ao exterior, entregando o país à financeirização da economia, ao crescimento desproporcionado do sector bancário, empenhado em suscitar a procura interna e o consumo na base totalmente artificial do recurso ao crédito e ao endividamento (fenómeno que tanto afectou os particulares como as próprias empresas);
– e o facto, quase sempre negligenciado nos comentários políticos, de que a classe empresarial portuguesa se reduz, com raras e honrosas excepções, a duas categorias: o pato-bravo boçal e chico-esperto, que arruína as empresas, foge com o dinheiro e deixa atrás de si centenas ou milhares de trabalhadores no desemprego e com salários em atraso; e o grande chupador da teta do Estado, que vive em conluio com uma classe política corrompida até à medula, sempre à espreita das altas negociatas cozinhadas por baixo da mesa, das concessões atribuídas sem concurso público, das parcerias público-privadas que não cessam de cavar as finanças do Estado (e cuja origem, uma vez mais, é bem anterior à presença de Sócrates no Governo).
Ora, cada um destes factos não remete directamente para a governação socratina, a qual, quando muito, se limitou a prolongar tendências que já vinham de trás.
Na verdade, os três primeiros factos responsáveis pelo buraco em que estamos metidos ocorreram e foram consolidados no período de governação deste senhor:
E a explosão dos mercados financeiros em Portugal, consequência do acesso fácil ao crédito com taxas de juro reduzidas, aconteceu durante os governos deste cavalheiro:
Por isso, é de uma enorme miopia analítica querer empurrar a exclusiva responsabilidade para os braços do outro pseudo-engenheiro que nos saiu na rifa (por obra e graça do sufrágio universal…). De resto, os que hoje o criticam não deixaram, no passado, de aplaudir entusiasticamente as opções políticas que originaram os factos acima indicados, quando não participaram activamente na sua génese.
Todavia, também não é miopia menor esperar que este político emergente
consiga (ou sequer queira) redimir o país do desastre a que nos conduziram. O seu programa ideológico, cuja matriz neoliberal não faz questão de ocultar, significa apenas mais do mesmo. E o mesmo é a destruição vertiginosa dos direitos sociais dos trabalhadores, o seu empobrecimento como contrapartida de uma incessante redistribuição da riqueza nacional dos que pouco têm para os que muito acumulam.
Não perceber isto é não perceber nada. E não perceber nada implica, hoje em dia, ficar a esbracejar no pantanal. A menos que se tenha a conta bancária de um Belmiro de Azevedo ou a reforma choruda dos altos funcionários do Banco de Portugal (os mesmos que dizem que temos de nos conformar com um futuro de miséria envergonhada).
Na linha do nosso argumento, o Paulo Guinote escreveu dois “posts” brilhantes (do melhor que ele já publicou) que dizem o que tem de ser dito: aqui e aqui.
Sobre a insustentabilidade do modelo económico vigente
Num “post” mais abaixo, o sempre lúcido José Luiz Sarmento fez algumas observações bastante pertinentes. Sustenta ele que, tal como foi demonstrado num passado que Karl Polanyi soube dissecar tão bem, o mito dos mercados inteiramente livres é intrinsecamente insustentável, dadas as suas contradições internas e a sua mera inoperacionalidade. O momento actual vem mostrá-lo, uma vez mais, da forma mais eloquente e dramática. Releva da alucinação defender que mercados financeiros incontrolados possam ditar as regras da política económica, traduzidas em austeridade, em reduções salariais, em desemprego maciço, e imaginar que deste cenário possa brotar algum crescimento económico “alavancado” (como agora se diz) em exportações. Mas exportar para onde e para quem?
Teria graça, se não fosse socialmente trágico, ver o nosso governo a regozijar-se, na proposta do orçamento para 2011, com a perspectiva de a perda drástica do poder de compra da grande maioria dos portugueses significar uma redução da necessidade de importações. Imagine-se que, perante a crise, todos (ou quase) os Estados da zona euro se lembram de celebrar a mesma solução! Onde fica o espaço para o mirífico aumento das exportações que nos permitirá sair do buraco se todos estiverem a pensar em reduzir as importações? E não é isso mesmo que está a acontecer?
Daí a insustentatibilidade do modelo de que o José Luiz Sarmento fala. O que se está a aproximar é de tal forma irracional – o caminho em uníssono para a recessão e a depressão económica – que o modelo vai acabar por tropeçar e implodir em si mesmo.
O problema – e o José Luiz também toca neste ponto – é saber como se vai dar essa implosão. Ela tanto pode ocorrer por via da pressão que as lutas dos trabalhadores exercerem sobre os actuais governantes europeus, ou pode dar-se mediante a emergência de movimentos de extrema-direita capazes de capitalizar o descontentamento popular. Ou seja: pode apresentar um sentido emancipatório ou pode significar um retorno ao passado mais tenebroso, e nunca verdadeiramente superado, da Europa.
O mais triste de tudo isto é constatar a inquietante persistência de uma peculiar estupidez europeia, que não consegue extrair e reter as mais importantes lições da sua própria história. Nem as lições recentes – em vez de se colocar uma rédea firme nos mercados financeiros que conduziram à crise económico-financeira, os mesmos são deixados inteiramente à solta e a fazer chantagem com os Estados -, nem as lições que o século XX nos devia ter legado…
Só 5%? É pouco!!! É preciso mais…
O cartaz tem um ano. Saímos à rua no dia 19 de Setembro de 2009. A incompetência, a mentira e a demagogia nunca nos enganaram. Lutámos com os meios que tínhamos, de forma livre e independente, sem cedências, convictos das razões justíssimas que nos assistiam, numa luta e numa resistência cívica contra tudo aquilo que nos massacrava e atingia, directamente, “no osso” e na alma, no dia a dia, todos os dias. Nunca vacilámos. E nunca fomos em sorrisos.
Chamaram-nos radicais…
E o futuro? Talvez aos 20%…
Nós já cá estamos. E não desistimos. No way, José!