Desmontando o modelo de gestão das escolas
Mário Carneiro, com o seu blogue «O estado da educação e do resto», é, no nosso país, um dos bloggers que melhor pensam as questões educativas (e o resto). Os seus textos não respeitam algumas das “normas” da blogosfera: não são curtos e estão a anos-luz do pronto-a-consumir de ideias para deglutição distraída. Pelo contrário: são textos por vezes densos, com um rigor argumentativo implacável, e que exigem concentração do leitor. São, em suma, textos de quem pensa, destinados a quem quer pensar. Se, contudo, os lermos até ao fim, somos sempre retribuídos com alguns dos melhores argumentos que circulam na blogosfera a respeito dos problemas que se abatem sobre o sistema educativo em Portugal.
Servem estas palavras de introdução a um conjunto de “posts” nos quais Mário Carneiro tem vindo a desmontar, peça a peça, as contradições e os dislates que afectam o actual modelo de administração escolar. Num momento em que as direcções sindicais parecem ter esquecido um dos piores abcessos da nossa Escola Pública, relegando para um estranho segundo plano aquilo que é, de facto, central e decisivo, estes textos de Mário Carneiro vêm lembrar-nos que continua a pesar nas escolas um modelo de gestão que inquina por completo o quotidiano profissional dos professores.
Chamamos, em particular, a atenção para um aspecto que o Mário sublinha com especial ênfase: o hibridismo, neste modelo de administração, entre procedimentos pseudo-democráticos e procedimentos de gestão “empresarial” que esvaziam totalmente os primeiros. Vale a pena ler:
Apontamentos sobre um desastroso modelo de gestão – 1
Apontamentos sobre um desastroso modelo de gestão – 2
Aprendendo com os outros
JM Correia Pinto, uma das melhores formas de vida inteligente da blogosfera nacional, explica por que é que “isto” já não tem remédio.
Leitura indispensável
Paulo Granjo, quando não escreve a defender greves gerais de dois dias, produz textos incisivos e luminosos. Este é um deles.
Aí se explica que o mito da insustentabilidade financeira do Estado social não passa disso mesmo: de um mito. A parte essencial do argumento de Paulo Granjo está aqui. Para devolver a política ao lugar onde, falaciosamente, se julga haver apenas economia:
«É claro que os serviços (e segurança no futuro) que são garantidos pelo estado social constituem uma forma indirecta de distribuição de riqueza entre capital e trabalho. É claro que os interesses das partes são diferentes, e que o aumento da “fatia” de riqueza de uma delas se faz à custa da outra, esteja-se em crescimento ou em depressão económica. É claro que, por isso, os salários reais e os benefícios sociais não têm que seguir as flutuações das conjunturas económicas. Podem aumentar mesmo que a economia decresça, tal como podem ser degradados em tempos de crescimento económico (como em décadas passadas), ou (como agora) num grau muito maior do que o da degradação da economia. A questão é qual é a parte do trabalho e do capital na distribuição da riqueza, e isso não é um automatismo económico, mas uma opção política e o resultado de uma correlação de forças sociais.»
A disfunção pública (ou as “gorduras” do Estado em que ninguém toca)
Extraído de um dos segredos mais bem guardados da blogosfera nacional (implacável na verrina, ideologicamente perverso, inteligentíssimo e muito, muito bem escrito):
«Fala-se muito em desembaraçar o Estado do seu número excessivo de funcionários. Ainda há dias, na entrevista à RTP, o ministro das Finanças apregoava não sei quantas centenas de funcionários em rampa de lançamento para um qualquer limbo ou aterro sanitário.
É evidente que o Estado, na medida em que se tornou refém de seitas e receitas partidárias (e não só), descambou numa espécie de cancro maior da Nação. Brada aos céus de escândalo a quantidade de mamíferos que por lá se recreia e locupleta. Mas, a bem do rigor, convém que sejamos sérios na análise destes problemas. Por isso mesmo, compete que se diga, com toda a clareza, que se há algo excessivo no Estado Português, e há, esse excesso, essa demasia não reside certamente no número de funcionários. Pelo contrário, os funcionários, tal qual o país, são poucos para tamanho Estado. Relembro até que no tempo em que ainda existia um Império para administrar, o Estado era menos de um quinto do que é actualmente. O País diminuiu, mas o Estado aumentou. Significa que o Estado vive a parasitar a Nação. Essa, de resto, é uma lei antiga e fatal em toda a parte do mundo, só que entre nós ganhou foros de regabofe épico. Porém, repito, e por estranho que pareça, não são os funcionários do Estado os responsáveis por tão descomedida voragem.
Acreditem, espantem-se, arrepiem-se, façam como entenderem, mas não são. Querem a demonstração? Aí vai.
Os funcionários do Estado, efectivamente, são poucos: os disfuncionários é que são muitos. Este detalhe é sistematicamente escamoteado. E não devia. Pelo contrário, devia constituir ponto de partida para toda e qualquer diagnóstico sério da epidemia. Como é bom de ver, existe a Função Pública e existe a Disfunção Pública. O país está todo ele disfuncional porque o peso da Disfunção Pública é esmagador em relação à sua congénere. Querem exemplos?
Na educação (que é igual à Saúde, à Justiça, etc): lá estão os funcionários – os professores e os contínuos; e lá estão os disfuncionários – os administradores, os burrocratas do ministérios, a pandilha das DREs, os sindicalistas, os inspectores da pevide, etc. Os professores – isto é, os funcionários – padecem concursos, suportam nomadizações, aturam os educandos das televisões e dos futebóis (e na hora de tocar píveas aos orçamento, vão de charola para o desemprego, ou nem de lá escapam); os disfuncionários ninguém sabe como ali vão parar, mas, uma vez lá catrafilados, uma coisa é sabida: nunca mais de lá saem. A missão dos disfuncionários é impedir que os funcionários funcionem. Quanto pior os funcionários funcionem, ou seja, quanto melhor disfuncionem, mais disfuncionários são precisos para analisar, perceber e engenhar soluções para a disfunção dos funcionários. Invariavelmente, os disfuncionários, após grandes marchas e serões forçados, autênticas maratonas de fazer corar um kafka, descobrem que há funcionários a mais. A coisa não está a disfuncionar como deveria e inicialmente era previsto (por eles, naturalmente). É preciso espiolhar, avaliar e descobrir quem teima em funcionar. E pô-lo no olho da rua. A disfunção Pública só tem e cumpre um dogma inexorável: o único problema, fonte de todos os problemas, é a escassez de disfuncionários e o excesso de funcionários. Essa lei única, soberana e absoluta deriva do facto de todo o disfuncionário ter sempre um familiar, amigo ou confrade cujo contributo é imprescindível para a Disfunção Pública. Toda a Disfunção Pública será sempre pouca. Tudo isto pode parecer absurdo, mas não é: é apenas perverso.
E a perversão imbrica na mentalidade assaz cavilosa mas típica do disfuncionário: está convencido que ele é que é o funcionário e que a Função Pública é uma disfunção. Traduzindo para o concreto: o Estado não existe para servir os contribuintes; os contribuintes é que existem para servir o Estado. A escola não serve para instruir, nem educar; os tribunais não existem para ministrar a justiça; os hospitais não estão lá para zelar pela saúde dos cidadãos. Não, tudo isto existe para os disfuncionários brincarem às reformas, às experiências, às cobaias com o dinheiro e o coiro alheios -isto é: para os disfuncionários perseguirem, torturarem e sanearem os funcionários. A seguir ao 25 de Abril, faziam-no em nome da higiene política, agora fazem-no em nome da higiene económica. Não tarda muito e será em nome da higiene sexual.
Por outro lado, logo que se apanha na Disfunção Pública, o disfuncionário adquire a firme convicção que não é condignamente tratado: o dever do Estado é promovê-lo e subsidiá-lo em todos os seus caprichos e mariscadas. E ele não está ali para outra coisa. Desata pois a disfuncionar com todas as suas forças. Sabe que quanto melhor disfuncionar, tanto maiores serão as suas chances. Quando não andam a perseguir, torturar e sanear funcionários, os disfuncionários conspiram, insidiam, manobram e intentam ultrapassar-se uns aos outros. O pior, invariavelmente, vence e adquire poderes, privilégios e prorrogativas acrescidos.
De tudo isto, com é facil de calcular, resulta um panorama deveras pitoresco:
Há todo um Estadão a cavalo na Nacinha. Compõem-no um número cada vez mais reduzido de funcionários e um número sempre crescente de disfuncionários. Os disfuncionários apregoam o “estado mínimo”, ou seja, um número mínimo de funcionários que sustentem laboralmente um número máximo de disfuncionários. Bem como um número máximo de contribuintes que paguem ambos, claro está. A tarefa dos funcionários é canalisar as receitas dos contribuintes para os disfuncionários e carrear as directivas e receitas destes para o país. Não há qualquer exagero em dizer que os disfuncionários são parasitas compenetrados de todo o restante dispositivo: parasitam laboralmente os funcionários e parasitam monetariamente os contribuintes. Alcançamos assim a demonstração inicialmente requerida: na verdade, o Estado não tem funcionários a mais, até tem a menos: o que tem a mais, disparatadamente, é parasitas. Consequentemente, o que qualquer governo sério precisa de reduzir, com a máxima urgência, caso pretenda impedir o fatal colapso de tamanho rilhafoles e rilha-orçamentos, é, sem sombra de dúvida, o número de parasitas, não o de funcionários.
Cito um caso emblemático e verídico: fulano X trabalha no Instituto Y. Não tem mesmo feito outra coisa na vida nos últimos 25 anos. Desunha-se todos os dias executando as tarefas de três mais a chefe e a chefe da chefe. Atura, além do som ambiente do galinheiro, os ralhetes e os humores pré-menstruais (ou pós-menopáusicos) da hierarquia. Ciclicamente, ainda contempla, a cada fim-de-mês, a passagem do cometa Z, um assessor/avençado/ou lá o que é misterioso, que só ali passa para receber a renda choruda inerente à sua condição fantástica (uma entre várias, manantes de diversos institutos, direcções e empresas). Pois bem, o Instituto Y já se desembaraçou de diversos funcionários, mas os cometas, esses, prosseguem inexpugnáveis. Cometas, plural, digo bem, porque, entretanto, de um passaram a dois. Lá vão surgindo, todo o fim-de-mês. São aos milhares, às constelações por todo esse país desgraçado. Provenientes e ioiozantes das galáxias partidárias. Dos buracos negros clientelares. Vão acabar connosco se não acabarmos com eles.
Este postal é caótico e a raiar o alucinante, mas não me culpem nem refilem comigo. Limitei-me a transcrever o mais cruamente possível a realidade duma terra lançada aos bichos.»
«É preciso ir mais além», diz ele. E nós concordamos
Outra das formas de vida inteligente da nossa blogosfera assina aqui um texto que nós subscrevemos, de uma ponta à outra. Para ler com muita atenção por todos aqueles que acham que isto vai lá com umas greves gerais de um dia (ou de dois), feitas de vez em quando.
Outro texto inteligente (e fundamental)
Rui Bebiano, um dos melhores bloggers da nossa praça, assina aqui um texto de uma enorme pertinência para pensarmos o momento actual, indo ao encontro de muito do que temos dito.
Esse texto permite-nos perceber o duplo drama em que estamos metidos:
– De um lado, os políticos que se vão alternando nos governos e que se limitam a gerir o que existe, sabendo que essa gestão não encerra quaisquer soluções ou perspectivas de futuro, e sabendo também que a acumulação de austeritarismo só vai produzir a “necessidade” de mais austeritarismo, numa espiral sem fim e sem saída. Podemos dizer, claro está, que tais políticos estão, no fundo, a executar um perverso programa de direita neoliberal, apostado em transferir para os muitos ricos o que ainda resta dos rendimentos de uma classe média cada vez mais empobrecida. Mas, como já referimos antes, este programa é suicidário até do ponto de vista dos interesses da minoria abastada. Pela simples razão de que a corda não pode ser indefinidamente esticada. Nalgum ponto ela irá quebrar e, quando isso acontecer, os ricos não terão motivos para ficarem contentes: a base social da sua riqueza ter-se-á volatilizado numa das curvas da espiral de austeridade. Portanto, de um dos lados do torniquete que nos atormenta só podemos esperar mais do mesmo: uma vertigem de irracionalidade política e económica.
– Mas, do outro lado o panorama não é mais risonho: aqueles que poderiam protagonizar as alternativas parecem incapazes de as articular num programa político consistente e mobilizador. Já o dissemos várias vezes: os que, pela sua tradição histórica, deveriam ser os representantes “naturais” dos interesses dos trabalhadores – partidos de esquerda e sindicatos -, estão eles mesmos conformados em gerir o que existe. Neste caso, empenhados em garantir a sobrevivência dos nichos que conquistaram no sistema de representação parlamentar ou na concertação social. É certo que ainda vão agitando algumas bandeiras de protesto para marcarem presença. Mas não saem daí com propostas que levem o cidadão comum a admitir que haja, por essas bandas, uma alternativa capaz de produzir uma solução de governo credível.
Pois é disso que se trata. As alternativas, para o serem de facto, têm de se transformar numa estratégia de governação do país.
E não se diga que, na verdade, elas não existem e que estamos, por isso, condenados à política da “troika”, como nos querem fazer crer as vozes do dono que ontem se fizeram ouvir até à náusea nas televisões.
Há realmente outro caminho, temos quem pense outras soluções técnicas em termos económicos e financeiros, baseadas em lógicas que rompem com o círculo vicioso do austeritarismo recessivo. E, não por acaso, até são essas as soluções que nos permitiriam sair da crise. Basta irmos acompanhando o que se escreve no blog «Ladrões de Bicicletas», produzido por economistas que pertencem ao melhor da nossa academia, mas que, por estarem totalmente desalinhados do “consenso” neoliberal, não têm a audiência que merecem.
As alternativas, portanto, existem, e estão aí para quem as queira entender. O que não existe, o que continua a não existir, é uma força política que pegue nessas soluções e as converta num programa político que atravesse a sociedade portuguesa e que conquiste o eleitorado.
E é esse vazio que reduz, drasticamente, o impacto futuro das manifestações que se vão realizar neste dia 15 de Outubro.
Nós vamos lá estar. Mas com a consciência amarga de que não chega protestar quando não se consegue actuar politicamente para lá do protesto.
(E, por favor, não nos digam que essa actuação passa por coisas como «assembleias de rua» ou «acampadas». Poupem a nossa inteligência!)
A propósito de um capitalismo estúpido e louco
Há antropólogos que pensam muito bem. O Paulo Granjo, que é antropólogo, escreveu aqui um texto que deveria ser lido, muito devagarinho, por cada um de nós e pelos “leitores” que abundam por aí. Aprende-se muito a ler coisas inteligentes.
Basicamente, Paulo Granjo defende uma tese que temos subscrito por aqui: o regresso às condições sociais do século XIX, agora ensaiado pelos turiferários do liberalismo à solta, é insustentável até do ponto de vista dos interesses do grande capital.
Pois uma das coisas de que os arautos do capitalismo se gabavam é que Karl Marx se tinha enganado quando previu que o fosso crescente entre uma minoria de privilegiados e uma massa de explorados ia acender, nestes últimos, uma revolta social tão maciça que acabaria por levar ao derrube da ordem social vigente e à instauração do socialismo.
Apetece perguntar aos jovens turcos do neoliberalismo actual: mas é isso que querem?
Só que, infelizmente, as coisas não são assim tão simples. Neste momento, nada indica que nos estejamos a encaminhar para uma tragédia social que confirme, muito a posteriori, as previsões do velho barbudo. O que não quer dizer, obviamente, que não nos estejamos a encaminhar, de facto, para uma tragédia social. Estamos e a passos mais largos do que se poderia prever. Só que, no fim da linha, não estará necessariamente uma saída feliz.
Conforme o texto de Paulo Granjo sugere, as alternativas ao sistema em vigor não estão perfiladas, como no tempo de Marx ou de Lénine, na promessa dos «amanhãs que cantam». Esses «amanhãs» já foram. Morreram na loucura criminosa dos Gulags, no colapso miserável da antiga União Soviética e dos seus satélites, na China da falsa «revolução cultural», agora convertida às “delícias” do capitalismo selvagem (sim, os chineses já sabem o que é o «regresso ao século XIX» em pleno século XXI).
Por isso, ó malta mais extremista do 5 Dias – blog no qual Paulo Granjo vai tentando pôr bom senso -, a revolução socialista não está aí ao virar da esquina. E não é por partirem umas montras em manifestações de rua que ela acontecerá.
Antes disso, ainda têm de construir uma ideia de sociedade socialista que não se confunda com os experimentalismos falhados de um passado do qual a esquerda pouco tem para se orgulhar.