Dedicado a todos os que recusam o falhanço socialmente organizado (e para os que amam Brassens e a língua francesa)
O genial autor desta canção – talvez o melhor escritor de canções da língua francesa – teria feito 90 anos em 22 de Outubro do corrente ano, se ainda estivesse entre nós. É claro que continua a estar. Imperdoavelmente, deixámos passar essa efeméride. Redimimo-nos agora, com uma canção que celebra todos os que se recusam a viver no redil e a pertencer ao rebanho:
Porque nada é garantido
Ontem, num interessante colóquio com o título de «Estado, Protesto Popular e Movimentos Sociais no Portugal Contemporâneo», organizado pelo Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, recordou-se o que foi a repressão das greves operárias nos anos 40 da ditadura salazarista.
As coisas passavam-se assim:
Concretizada a greve, a empresa era imediatamente encerrada e os seus trabalhadores eram todos (sem excepção) despedidos. Depois a PIDE e o patronato procediam à análise do comportamento de cada trabalhador, individualmente, caso a caso. Aqueles que se revelassem como líderes ou participantes mais activos na contestação laboral, para além de serem detidos e sujeitos aos interrogatórios “carinhosos” da PIDE (e, no horizonte próximo, havia mesmo penas de prisão), ficavam proibidos de trabalhar em qualquer empresa da região.
Para quem pense que isto é passado e que não há qualquer hipótese de semelhante cenário regressar, convém lembrar que, há muito pouco tempo, também se pensava que os vencimentos eram garantidos e que não podiam ser reduzidos por decreto e que o vínculo à Função Pública era um direito sagrado no qual ninguém podia mexer – para já não falar dos que trabalharam 20 ou 30 anos numa empresa e que, de um dia para o outro (muitas vezes sem aviso prévio), se viram no desemprego.
Porque não há direitos adquiridos. Só há direitos conquistados. E essa conquista tem de ser feita todos os dias.
Memórias de Abril: lembram-se da Rádio Renascença «ao serviço dos trabalhadores»?
Tudo começou em 27 de Maio de 1975, quando os trabalhadores da RR ocuparam os estúdios e o centro emissor, colocando-se decididamente ao lado da radicalização da luta pelo «poder popular» e levando ao afastamento da Igreja que detinha a propriedade dessa rádio. Um escândalo num país de católicos costumes!
O sonho durou até Outubro, quando o governo de Pinheiro de Azevedo mandou selar as instalações da RR e fez explodir, à bomba, o posto emissor da mesma.
Memórias de Abril: nascimento da «gestão democrática das escolas» ou um exemplo de como nem tudo foram «cravos» em 1974
Na continuação da divulgação de documentos, escritos e visuais, produzidos no período de 1974-76, publicamos hoje um documento que é quase um inédito.
Dizemos «quase» porque, contrariamente a outros documentos que expusemos em “posts” anteriores, este não é um exemplar único. Mas é provável que poucos arquivos o contenham (talvez este, e mesmo assim não é seguro).
Trata-se de um documento que, à primeira vista, ilustra a transição da direcção unipessoal de uma escola para a sua gestão colegial e democrática. Infelizmente, trata-se também de um exemplo de como, no período revolucionário, se cometeram abusos e injustiças com desfecho trágico. Nem tudo foram «cravos» no pós-25 de Abril.
O documento em questão traz a assinatura de Manuel Calvet de Magalhães, um homem hoje esquecido mas que, em 1973, era considerado um dos melhores pedagogos de sempre em Portugal.
Quando se deu o 25 de Abril, Calvet de Magalhães era director da Escola Preparatória Francisco de Arruda.
Situada no bairro da Ajuda, em Lisboa, numa estranha intersecção social a paredes meias com habitações de classe média, com palacetes de altíssima burguesia e com bairros de lata, a Francisco de Arruda era um verdadeiro milagre de experimentalismo pedagógico. Escola-piloto lhe chamaram, e com razão.
Escola feita à imagem do ideal que Calvet de Magalhães traçara para o ensino em Portugal, nela se ensaiavam novos tipos de relacionamento entre professores e educandos, onde a exigência se casava com a estimulação do espírito crítico e da criatividade dos alunos.
Uma escola que queria proporcionar aos alunos muito mais do que o simples formato das aulas – e por isso os Sábados na Francisco de Arruda eram dedicados à projecção de filmes para toda a comunidade estudantil, precedidos de debates com figuras públicas (escritores, jornalistas, artistas, etc.).
Uma escola equipada com o que, nos anos 60 e no início de 70, havia de melhor em laboratórios, meios audiovisuais e equipamentos desportivos.
Uma escola polvilhada dos mais pequenos detalhes para pôr as crianças e os adolescentes a pensar – e por isso havia frases e meditações de grandes pensadores pintadas nos muros ou em azulejos, e espalhadas pelos mais diversos sítios, desde os frisos dos pátios, do refeitório, até aos urinóis dos alunos (e não, aí não se encontrava o tipo de frases que costumam “decorar” esses lugares…).
Uma escola que era, física e esteticamente, um espaço deslumbrante para os alunos, pontuado por pequenos pormenores de beleza que o próprio Calvet de Magalhães, artista plástico, se esforçara por disseminar.
E toda esta utopia materializara-se, note-se bem, não numa escola privada para meninos ricos, mas numa escola pública, frequentada por indivíduos dos mais diversos estratos sociais.
A Escola Preparatória Francisco de Arruda, dirigida por Calvet de Magalhães, era a concretização do que poderia ter sido (do que deveria ter sido) a escola pública, democrática e de excelência, do pós-25 de Abril.
E, em 1974, aconteceu a revolução. Com ela, Calvet de Magalhães viu-se obrigado a partilhar o poder na Francisco de Arruda. O documento que se segue mostra o início desse processo. E deixa entrever alguns aspectos desagradáveis (e depois profundamente trágicos) que lhe estiveram associados.
Trata-se de um documento que Calvet de Magalhães se sentiu forçado a enviar aos encarregados de educação. Não traz data, mas deverá ter sido escrito em meados de Julho de 74:
Pelas entrelinhas, percebe-se que o processo de transformação do modelo de direcção da escola não estava a decorrer ao gosto de Calvet de Magalhães. Na verdade, sabe-se hoje que ele estava a ser objecto de todo o tipo de vexames e de perseguições internas movidos por grupos de professores ansiosos por fazer sentir ao “senhor reitor” todo o peso da nova ordem “revolucionária”. Há, aliás, um detalhe pungente neste documento: o parágrafo em que Calvet de Magalhães se sente na necessidade de fazer prova do seu passado de confronto com a ditadura. Uma necessidade que decorria do clima violento de saneamentos selvagens que se praticaram em 1974-75, os quais, se politicamente justificados em muitos casos, foram de uma tremenda injustiça em muitos outros. Calvet de Magalhães teve de puxar dos seus galões de apoiante de opositores à ditadura para evitar o seu próprio saneamento de uma escola que ele contruíra e que tanto amara.
Vem então o epílogo desta história. Um epílogo trágico, brutal e chocante – para todos os que conheceram e estimaram Calvet de Magalhães.
Cada vez mais pressionado por alguns dos seus colegas, que lhe tinham “batido pala” e que agora se descobriam muito “progressistas”, acusado de gestão financeira danosa – uma acusação que depois se soube ser injusta -, Manuel Calvet de Magalhães, numa noite de Agosto de 1974, entrou na Escola Preparatória Francisco de Arruda, nesse espaço onde tanto havia de seu, nesse espaço onde ele sonhara a escola ideal para todos.
Entrou na Francisco de Arruda para se suicidar.
Em Agosto de 1974, Calvet de Magalhães, que ontem e hoje alguns recordam como um dos maiores pedagogos portugueses do século XX, matou-se numa Escola com a qual construíra uma relação simbiótica.
E este exemplo, embora isolado, mostra que nem tudo foram «cravos» há 37 anos atrás.
E mostra também, para mal dos nossos “pecados”, que a génese dos processos de democratização pode ter conhecido, em momentos cruciais, injustiças profundas que jamais serão redimidas.
Porque nem tudo é fácil. Nem tudo é linear. Nem tudo é a preto e branco.
Memórias de Abril: uma estranha coisa chamada «reforma agrária»
Não se pode falar do período que vai de Abril de 1974 a 1976-77 sem se referir a famosa «reforma agrária».
Algumas das imagens que aqui publicamos ajudam a recordar essa experiência. Imagens uma vez mais extraídas da rica forma de comunicação e “agitprop” constituída pelas muitas centenas (milhares?) de autocolantes que foram criados ou reinventados na altura.
Também aqui a história está por fazer. Sabemos os lugares-comuns, os chavões ideológicos que, à esquerda e à direita, circularam durante o PREC e depois, no seu rescaldo, quando a «reforma agrária» começou a ser rapidamente desmantelada.
Sabemos que o Alentejo foi a única região do país onde ela foi verdadeiramente reclamada, dado que a norte do Tejo a situação era outra e outro o país, sobretudo nas regiões mais setentrionais, de pequena propriedade rural e com um campesinato simultaneamente miserável, temente a Deus e ultra-conservador.
Sabemos que, no Alentejo, a «reforma agrária» deu origem a uma multiplicação de cooperativas agrícolas formadas na base da ocupação de terras pelos camponeses.
Sabemos que essas cooperativas tinham nomes que eram, por si só, todo um programa político:
Sabemos que o Partido Comunista Português, pelos laços históricos que o uniam às lutas camponesas no Altentejo, se apresentava como:
Sabemos que, por via da intervenção do PCP na região do Alentejo, houve toda uma propaganda que recebeu o apoio dos regimes comunistas da Europa de Leste:
E sabemos que, afinal, a «reforma agrária» não foi, realmente, reforma agrária, visto não ter chegado a traduzir-se numa legislação que alterasse, de forma estrutural, o regime de propriedade e de distribuição da terra, a organização da produção agrícola, etc.
O que se chamou «reforma agrária» visou tão-só (e já não era pouco) responder à pobreza profunda do campesinato alentejano, pobreza cujo correpondente era a improdutividade de largos latifúndios deixados ao abandono pela burguesia estéril que nos coube em sorte.
Está ainda por fazer, para além das formatações ideológicas (à esquerda e à direita), o balanço desta experiência. Foram as cooperativas agrícolas, como o PCP pretendeu, uma história de sucesso social e económico, apenas traído pelos estrangulamentos financeiros que os «governos da burguesia» impuseram? Ou foi a «reforma agrária», conforme as forças de direita insistiam, uma ruína nos domínios da gestão empresarial e da produtividade? Ou houve antes uma variedade de casos que se inscreveram ora numa, ora noutra destas categorias?
Não temos ainda uma resposta cabal para tais perguntas.
Sabemos apenas que, com os governos PS, se encetou o processo de restituição das terras aos antigos proprietários e sua indemnização.
Sabemos que, uma a uma, as cooperativas foram morrendo.
Sabemos que a pobreza, nos anos 80, regressou ao Alentejo e, com ela, a necessidade de emigração.
Sabemos que, com a Barragem do Alqueva – um dos sorvedouros inúteis de dinheiros públicos de que ninguém hoje fala -, se visa transformar o Alentejo num gigantesco campo de golfe para turista estrangeiro ver e jogar.
Sabemos que o Alentejo continua longe de cumprir aquelas promessas enunciadas nas estrofes finais do «Cantar Alentejano» de José Afonso.
Memórias de Abril: uma estranha coisa chamada «poder popular»
Também a exemplo do que sucedeu na Rússia genuinamente soviética – a que percorreu o período de Fevereiro a Outubro de 1917 -, no Portugal de 1974-75 multiplicaram-se, por toda a parte (mas sobretudo nos centros urbanos), formas de organização popular de base. Sem esperar pelos ditames dos partidos – muitos deles ainda à procura de si próprios -, as pessoas auto-organizaram-se ao nível dos bairros, das ruas, dos locais de trabalho. Num país marcado por um persistente défice de «sociedade civil», de «cidadania activa» ou de «democracia participativa», os anos do PREC vieram contrariar essa imagem de um povo ausente de si próprio.
As comissões de moradores foram as formas mais comuns do que se chamou então «poder popular»:
Algumas foram constituídas para responder a necessidades muito concretas que afectavam a vida de quem trabalha, como, por exemplo, a criação de creches:
Outras destas organizações de base visavam assegurar habitações condignas para todos, num país onde a proliferação de «bairros da lata» era um dos traços mais gritantes de miséria:
Outro exemplo de organizações populares foram as cooperativas de consumo, por vezes em articulação com os sindicatos, outras vezes de forma autónoma:
Este fenómeno, rico e variado, da auto-organização popular está ainda por estudar em todas as suas vertentes. Como surgiram estas organizações? Quem teve a iniciativa de as criar? A que regras obedeciam? Como se processava nelas a tomada de decisões? Qual o grau da sua democraticidade interna?Que relações mantiveram com o poder central e com as organizações partidárias e sindicais? Também elas sofreram, como os sovietes na Rússia de 1917, uma degeneração oligárquica e burocratizante?
Tudo isto precisa de ser cartografado em profundidade. Antes de mais, é necessário ir à procura dos documentos que estas experiências terão deixado. Tarefa certamente árdua, pois o que existe encontra-se disperso e muitas das organizações não terão sequer produzido documentação significativa . Mas alguma há-de existir algures. O que mostramos neste “post” é apenas a ponta de um icebergue iconográfico: os muitos autocolantes então difundidos, boa parte deles para recolher fundos necessários ao financiamento das comissões e comités.
Em suma: historiadores precisam-se, pois a história social do pós-25 de Abril está toda por fazer.
Memórias de Abril: quando havia uma estranha coisa chamada «luta de classes»
«Eu vi este povo a lutar, para a sua exploração acabar», cantava José Mário Branco, em jeito de balanço de uma história que já se estava a esvair quando a canção foi divulgada.
Por muito que muitos o queiram hoje rasurar, 1974-75 é o período fundador da nossa democracia.
Foi aí que se instituiu o melhor que ainda temos (e que hoje nos pretendem roubar) dos nossos direitos cívicos, laborais e sociais. Foi aí que nasceu a Escola Pública, foi aí que se estabeleceu uma Segurança Social digna desse nome, foi aí que se lançaram as bases do que mais tarde veio a ser o Serviço Nacional de Saúde, foi aí que se consagrou a liberdade de expressão, de reunião e de manifestação, e o direito à greve.
E foi no período de 74-75 que, por um breve instante, pessoas que nunca tinham pensado em política, que sempre se haviam vergado aos patrões e às demais formas de tirania inscritas na sociedade portuguesa durante décadas, ousaram imaginar que podiam ser senhoras do seu destino e ter poder sobre as suas vidas.
Foi nesses anos que tudo parecia possível, quando as pessoas interrompiam as rotinas alienantes do trabalho para reunir e discutir o que fazer para viverem numa sociedade melhor – a produtividade ficava para trás, pois ficava, numa altura em que as pessoas percebiam não ser a «produtividade» um conceito politicamente neutro: produtividade para quem? A favor de quem? Em 1974-75 muita gente sabia fazer estas perguntas.
Ora, nada disto teria sido possível sem uma intensa luta de classes que rebentou em todo o país, nos mais diferentes sectores laborais, com uma veemência que assustou seriamente, pela primeira vez, as classes dominantes que, neste país, se julgavam protegidas de semelhantes abalos.
Formaram-se então, na maior parte das empresas, comissões de trabalhadores a exemplo do que ocorrera na Rússia de 1917. Num país em que os salários eram escandalosamente baixos e as condições de trabalho muitas vezes despóticas, não é de admirar que as greves se tenham generalizado.
Depois, com a paz podre que se seguiu ao 25 de Novembro de 1975, tudo se esfumou. A revolução social acabou tão depressa como tinha começado, ainda que muitas das suas conquistas perdurassem por mais tempo. Mas volatilizou-se aquela euforia, aquela materialização diária da utopia (que não passava de uma aparência, mas que era uma aparência vivida, o que a tornava paradoxalmente real).
Hoje, a sua memória parece-nos tão distante como a ditadura que esses tempos ajudaram a derrubar. E é com um sentimento de irrealidade que nos aproximamos dela.
Olhando para a inércia e a apatia dos dias actuais, perguntamo-nos: mas aquilo aconteceu mesmo? Foi mesmo possível que este povo de carneiros se tivesse levantado e batido o pé pelos seus direitos e feito tremer os Mellos, os Espíritos Santos, os Champallimauds?
Como é que tudo isso aconteceu? E como é que tudo isso se perdeu tão depressa?
Antes de Abril: negócios inconfessáveis
Agora, que tanto se fala da Líbia, sabem os nossos leitores que, em 1971, com o coronel Kadhafi já no poder, o Estado português andou a negociar com os líbios, às escondidas de toda a gente, a compra de petróleo em troca da venda de bombas de napalm fabricadas em Portugal? (E sabiam que Portugal tinha uma fábrica de armamento que produzia bombas de napalm?)
Ora vejam os excertos deliciosos deste aerograma (secreto!) enviado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros para a Embaixada portuguesa no Cairo em Janeiro de 1971. A justificação usada para a venda de bombas de napalm ao ditador líbio é, por si só, um tratado de cinismo político: não havia problema nessa venda porque os líbios tinham garantido que não iriam usar as bombas contra forças militares ou territórios portugueses (!!!).
Aqui fica o documento, recentemente desclassificado entre os telegramas e areogramas que podemos encontrar no Arquivo Histórico-Diplomático:
Antes de Abril: o longo braço da repressão
É sabido que a repressão da ditadura salazarista-caetanista não se abateu apenas sobre a oposição comunista, mas sobre todos os que ousassem discordar do status quo, de forma mais ou menos pública e activa.
Menos conhecidas são as perseguições que afectaram figuras cimeiras do clero católico no período da Guerra Colonial. De facto, o Concílio Vaticano II trouxe um vento de mudança à atitude dos missionários, levando a que muitos deles denunciassem publicamente, nas suas homilias e na própria imprensa internacional, as violências e os abusos que a PIDE e as Forças Armadas portuguesas andavam a cometer sobre as populações das colónias.
Em Moçambique, diversos Bispos se destacaram nessas denúncias, tornando-se imediatamente alvo da PIDE. Um deles foi Eurico Dias Nogueira, Bispo de Vila Cabral (actual Lichinga) na região do Niassa. Vemo-lo aqui, numa fotografia de 1966 ou 1967, na companhia dos dignitários muçulmanos com os quais encetou um diálogo ecuménico perfeitamente inédito à data:
Dias Nogueira não era exactamente um radical «vermelho» – como se viu, aliás, pelo seu percurso conservador, depois do 25 de Abril, na qualidade de Arcebispo de Braga. Mas, nos anos 60, a PIDE percepcionava-o como um perigoso subversivo, indo ao ponto de o acusar de ligações à Frelimo apenas porque Dias Nogueira ousava discordar dos seus métodos repressivos:
A correspondência do Bispo de Vila Cabral foi, nessa altura, sistematicamente violada pelos esbirros da PIDE em Moçambique. Era-o de forma a que o Bispo se apercebesse, no intuito de o amedrontar e de o levar a temer pela sua segurança se fosse “longe demais” nas suas acusações às práticas repressivas. Os dois documentos que reproduzimos a seguir mostram que nem as cartas que o Bispo enviava a Salazar escapavam à violação exercida pela polícia política:
Concluímos este exemplo com um documento altamente ilustrativo. Trata-se de um telegrama enviado pela PIDE à Interpol, solicitando a intercepção de uma carta que o Bispo de Vila Cabral tinha enviado ao Núncio Apostólico. Dado que se via claramente que essa carta tinha sido violada, a PIDE receava o incidente diplomático que isso poderia provocar. Este documento revela também o tipo de relações cordiais que a PIDE mantinha com as polícias de outros países e com a própria Interpol:
Antes de Abril: ainda o Tarrafal
Um dos presos que mais tempo de pena cumpriu no campo de concentração do Tarrafal foi João Faria Borda. Principal dirigente da malograda Revolta dos Marinheiros feita contra a ditadura de Salazar, foi condenado a 20 anos de prisão, 16 dos quais foram passados nessa prisão do regime, de 1936 a 1952, cumprindo ainda mais dois anos de detenção no Forte de Peniche.
Vemo-lo aqui, o segundo a contar da direita na segunda fila, numa daquelas fotografias feitas para enviar aos familiares e que não traduziam as reais condições da prisão:
Em 1943, numa das piores fases da prisão do Tarrafal (em plena 2.ª Guerra Mundial, quando os torcionários do salazarismo estavam convencidos de que os nazis ganhariam a guerra), João Faria Borda escreveu ao irmão, denunciando a falta de cuidados médicos de que os prisioneiros padeciam no campo. Reproduzimos aqui um excerto dessa carta, cujo tom usava as precauções necessárias para que o seu conteúdo não fosse cortado pela censura da prisão:
Antes de Abril – 2
Entre 1943 e 1946, Artur Faria Borda, já mencionado no “post” anterior, desdobrou-se em várias tentativas para obter uma amnistia que abrangesse os marinheiros que se encontravam presos no Tarrafal por terem participado na Revolta dos Marinheiros de Setembro de 1936 contra a ditadura de Salazar.
Sabia-se que tais esforços dificilmente seriam coroados de êxito. Salazar e a hierarquia militar sempre votaram a esses marinheiros insurrectos – para mais, comunistas – uma raiva nunca desmentida.
Mostramos, a seguir, documentos que revelam algumas das respostas que as petições de Artur Faria Borda, em conjunto com os familiares de outros detidos, suscitaram da parte de várias instâncias. Começamos pela carta de resposta de Ramiro Valadão, então director do “Diário Popular” (e mais tarde director da RTP). Na sua frieza lacónica, ela exemplifica bem o lado serventuário dos “jornalistas” alinhados com a ditadura:
Duas respostas de 1946, emanadas da Presidência do Conselho – ou seja, do próprio Salazar -, dispensam comentários adicionais:
Mais interessante, porque exemplificativa de uma “conversa da treta” por parte de uma alta figura do regime, é a resposta escrita em Março de 1943 por Alberto dos Reis, então Presidente da Assembleia Nacional (órgão a que presidiu entre 1934 e 1945):
Antes de Abril – 1
Os primeiros documentos que vamos aqui divulgar reportam-se à situação dos presos deportados no campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, o tristemente célebre «campo da morte lenta».
Na leva dos primeiros 152 presos políticos que “inauguraram” esse campo em 1936, contavam-se alguns dos marinheiros que haviam participado na famosa Revolta dos Marinheiros de 8 de Setembro de 1936, na qual a Organização Revolucionária da Armada, afecta ao PCP, procurou sublevar 3 navios de guerra com o objectivo de derrubar a ditadura de Salazar. Com várias debilidades organizativas – em parte fruto da idade juvenil de todos os participantes nessa revolta -, a insurreição dos marinheiros foi facilmente dominada,
com os seus principais dirigentes condenados a pesadas penas de degredo no Tarrafal. 16, 17 e 20 anos de prisão, quase todos integralmente cumpridos no campo da ilha de Santiago.
Artur Faria Borda, irmão de um dos principais dirigentes da Revolta dos Marinheiros, João Faria Borda – precisamente condenado a uma das penas mais prolongadas -, dedicou-se, em conjunto com os familiares de outros marinheiros presos, a pugnar pela melhoria das duríssimas condições de vida dos prisioneiros do «campo da morte lenta», a mais modonha das prisões da ditadura. O documento que a seguir mostramos é a resposta da Cruz Vermelha Portuguesa a uma carta em que Artur Faria Borda denunciava a falta de cuidados médicos dispensados aos presos do Tarrafal, falta essa (perfeitamente deliberada) que levou à morte de um largo número dos detidos. A resposta da Cruz Vermelha, que se limita a reproduzir a versão oficial do regime, traduz bem a cumplicidade dessa organização com a ditadura salazarista:
Memórias de Abril: o antes e o depois
Agora, que estamos prestes a celebrar 37 anos de democracia, e para lá de todos os balanços que possam ser feitos, é tempo de recuperarmos aqui algumas memórias de Abril.
Ao longo destes próximos dias iremos recordar aqui os anos de brasa revolucionária de 1974-1975. Iremos também regressar ao período da ditadura, para lembrar o que foi a repressão e o que foi a resistência que se lhe opôs.
Divulgaremos no nosso blogue documentos variados. Alguns encontram-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo; outros pertencem a arquivos particulares. Alguns são conhecidos, outros encontram-se há muito esquecidos, e outros ainda, totalmente inéditos, serão aqui divulgados pela primeira vez.
Tentaremos, desta forma, dar um pequeno contributo para que todos nós, portugueses, possamos medir tudo o que se ganhou e muito do que se perdeu desde 74-75 até aos nossos (cinzentos) dias.