Sobre a autoridade do professor…

… Umas tantas teses, em jeito telegráfico, e porque os acontecimentos graves destes últimos dias (destas últimas semanas, meses, anos) a isso nos obrigam:

1. A autoridade do professor, na sala de aula e perante os seus alunos, é um atributo estruturalmente indissociável do seu ofício. Não se é professor sem autoridade.

2. A autoridade do professor não é um dado natural, nem está imune aos processos de transformação histórica e social. Além disso, essa autoridade necessita de ser legitimada (perante os alunos, como perante os colegas de profissão)

3. O ponto anterior não implica, porém, que tal autoridade seja totalmente arbitrária ou tenha de ser absolutamente relativizada (o oxímoro é aqui propositado).

4. A autoridade do professor assenta no seu saber e na sua capacidade de o transmitir aos alunos, de modo a que, nessa transmissão, eles saiam mais enriquecidos no plano intelectual e no plano ético.

5.  A autoridade do professor, de acordo com a definição anterior, cria uma assimetria incontornável entre professor e alunos. A relação pedagógica só é possível dentro dessa assimetria e no reconhecimento da mesma por parte dos actores envolvidos.

6. O exercício da autoridade pode (e, em certos casos, deve) ser parcialmente negociado pelo professor com os alunos.

7. O ponto anterior não implica, contudo, que a autoridade em si mesma, quando devidamente legitimada, seja objecto de negociação.

8. Na escola pública democrática, tal como em qualquer organização social dotada de hierarquias estruturais (que diferenciam, por exemplo, quem sabe e quem não sabe, quem ensina e quem aprende), nem toda a autoridade pode e deve ser partilhada, nem todas as decisões podem e devem ser objecto de negociação, e nem todos os indivíduos podem e devem deter autoridade sobre qualquer assunto. Nenhuma democracia consegue funcionar sem espaços que são, por essência, não-democráticos. A escola pública limita-se a confirmar esta regra.

9. O conhecimento não é democrático, mesmo que o acesso a ele possa e deva ser democratizado.

10. A democratização do acesso ao conhecimento, através da escola pública, coincidiu historicamente com o domínio político de uma ideologia apostada em relativizar a própria ideia de conhecimento, nomeadamente do conhecimento científico.

11. A ideologia da relativização do conhecimento dominou politicamente o discurso pedagógico encarregue de legitimar as práticas da escola pública democrática. Uma boa parte das chamadas «ciências da educação» foi mobilizada para esse exercício de relativização e para a destruição da assimetria pedagógica entre professor e aluno, fomentando a ilusão da igualdade de todos os «saberes».

12. A relativização do conhecimento  acarretou, assim,  a  relativização da autoridade do professor, com danos irreparáveis na legitimidade deste último perante os alunos e perante a sociedade.

13. A relativização e a desautorização do saber e do seu representante, o professor, ficou associada à entronização do jovem e de um modelo de  ensino «centrado no aluno». Esse modelo corresponde a um igualitarismo falacioso segundo o qual os supostos «saberes» dos alunos têm valor idêntico, senão superior, ao dos professores. 

14. O igualitarismo pedagógico destruiu a possibilidade de uma igualdade social genuína e genuinamente democrática, pois manteve os jovens estagnados na miopia dos seus supostos «saberes» – invariavelmente ligados ao senso-comum de uma experiência social limitada – e incapazes de aceder à consciência crítica que só  a cultura científica e humanística, transmitida pela instituição escolar, pode proporcionar.

15. A desautorização permanente do professor  passou a ter o aval institucional do Ministério da Educação, traduzindo-se no discurso dos seus dirigentes políticos transitórios, caucionados pela ideologia pedagógica de um relativismo dominante que permanece bem enraizado nesse Ministério.

16. Em Portugal, a desautorização do professor, estimulada pelos poderes instituídos, tem sido reforçada por um senso-comum dominante em que imperam o desprezo pelos saberes académicos, o culto do oportunismo e do arrivismo social, o fascínio pela «esperteza saloia» e pela ascensão social fácil, mesmo quando reconhecidamente associada à corrupção económica.

17. O caldo de cultura mencionado nos pontos anteriores, conduzindo à perda de referências ético-políticas e de modelos de identificação, desemboca facilmente na violência exercida sobre antigas figuras de autoridade que sofreram e continuam a sofrer um processo de erosão imparável. O professor é uma dessas figuras. Não surpreende, por isso, que hoje ele se encontre particularmente exposto a diversas formas de agressão, formas que a ideologia relativista sempre procura desculpabilizar.

18. A violência dos alunos sobre os professores e a vulnerabilidade destes últimos são tanto maiores quanto a ideologia relativista suprimiu as categorias morais de responsabilização e de culpa, substituindo-as por um psicologismo generalizado para o qual só existem «vítimas» e potenciais «traumatizados», mesmo quando são estes os agressores.

19. Nenhuma reforma do sistema educativo e da escola pública, orientada para recentrar o ensino na transmissão intergeracional do conhecimento e na figura do professor, será minimamente eficaz, ou sequer possível, enquanto perdurarem os factores que fomos aqui assinalando.  

16 thoughts on “Sobre a autoridade do professor…

  1. Devia ser feito um cartaz de grandes dimensões com este texto e afixado pelo menos um exemplar em cada escola. Se a APEDE se quiser abalançar a isto, pode contar desde já com a minha contribuição monetária, já que não posso contribuir doutro modo.

  2. Uma reflexão excelente e incisiva tal como nos tem habituado o Mário Machaqueiro. Aqui deixo para ele um abraço.
    Quanto à ideia do José Luiz Sarmento expressa no comentário acima, também me parece óptima e vou tentar realizá-la. Quando estiver pronto, e se quiserem obviamente, deixo aqui como comentário um link para o ProtestoGráfico com o dito cartaz.
    Vamos começar a “”aquecer isto que tem andado muito morno??

    Até breve,
    ProtestoGráfico

  3. Meus caros,

    Não tinha pensado nisso, e seria pretensioso da minha parte propô-lo, mas a ideia do cartaz tem sentido, sobretudo no momento actual. E, como o nosso amigo do ProtestoGráfico sugere, é também uma forma de começar a reaquecer esta pasmaceira em que nos temos deixado atolar.
    Um abraço a todos.

  4. Permitam-me a banalidade: estamos a colher os frutos das orientações pedagógicas por que se optou nos últimos anos (décadas?), apoiadas nos pressupostos ao arrepio dos quais o avisado texto supra se desenvolve.
    Exemplos? Muitos; mas bastam estes dois: o anátema sobre conceitos nobres como “ensinar” (substituído pelo “ensino-aprendizagem” – bastardo de um perverso complexo da má consciência de quem adulterou o socrático “conhece-te a ti próprio”); a supressão do estrado, opção gémea da anterior na presunção de que o que se perdia das pretéritas vantagens relativas a visibilidade, autoridade e disciplina se acrescentava com ganho no nivelamento institucional e afectivo.

  5. Nicolau,

    Tanto podia ser dito a propósito das remodelações simbólicas no espaço escolar que traduziram o triunfo da ideologia a que o “post” se refere. Mas o teu comentário incide, de facto, nalguns aspectos essenciais de uma igualização bacoca de dimensões cuja assimetria teria de ser preservada para que o acto pedagógico tivesse alguma realidade. Mais vai lá dizer isso aos guardiões da cientologia da educação!

  6. Pois, Mário; consequências da perversão de conceitos – sobretudo se nobres, como o de “igualdade”. Como ensinou (!) o velho mestre Platão, a degeneração do superior é sempre a mais prejudicial.

  7. Gostaria de sublinhar algo que me parece fundamental: a autoridade do professor não existe a não ser que, antes de qualquer outra coisa, exista confiança no professor. E essa confiança no professor é exactamente aquilo que os governos de Sócrates sempre fizeram questão absoluta de mostrar que não tinham. Ontem como hoje. Essa desconfiança e a consequente diabolização dos professores constituem um crime e uma injúria inomináveis. Que o senhor presidente da República também compartilha, com um silêncio MISERÁVEL, para já não falar de muitos pais e seu (agora supostamente arrependido) representante mais mediático. Em grande medida, são também estes os culpados pela situação a que chegámos.

  8. Concordo contigo, Ricardo. Mas com uma ressalva que me parece importante: a desvalorização do papel do professor e a falta de confiança nele não são uma invenção dos governos de Sócrates. Digamos que esses governos agravaram exponencialmente uma tendência que vem de trás e que é mais profunda. Infelizmente, ela quase se confunde com a génese ideológica da ideia de escola pública neste país – sendo que, por sua vez, não é também uma invenção portuguesa, mas a importação de modas ideológicas que, noutros países, deixaram a respectiva escola pública no estado que se sabe. Também importa acrescentar que tais ideologias não actuam fora de um quadro económico e político apostado em esvaziar o sistema educativo da sua substância, a fim de que nele se (de)formem os futuros «cidadãos» acéfalos, acríticos, prontos para todo o serviço.

  9. Não haverá por aí Escola Sociológica de Frankfurt em demasia, Mário? Estou contigo na identificação da causa eficiente e no inventário das consequências; custa-me acompanhar-te quando avanças para tão evidentes “finalidades”…

  10. Estou a ser irónico, Nicolau. Provavelmente não há sequer uma intenção politicamente perversa do sistema. Tudo decorre da estupidez pura e simples.

  11. Por supuesto, Mário. A tua alusão à única “faculdade” humana que não conhece limites lança alguma luz sobre opções de outro modo ininteligíveis.
    Bom dia.

  12. A falta de confiança nos professores e na escola pode decorrer também da extrema desigualdade de riqueza e poder verificadas em Portugal. Um estudo recente mostra que a maior parte das disfuncionalidades da sociedade tem uma correlação mais forte com a desigualdade do que propriamente com a pobreza. Entre estas disfuncionalidades, os autores referem especificamente a confiança dos cidadãos nas instituições: quanto mais desigual uma sociedade, menos as pessoas confiam nos tribunais, nas polícias, nas escolas, etc.

  13. José Luiz,

    É sempre um prazer re(ler)ver-te entre nós. O teu comentário, só por si, suscitaria outro “post”. O factor que indicas é, realmente, decisivo na produção das patologias da sociedade portuguesa, e ele não vai certamente encontrar sequer um arremedo de solução com a nossa actual «classe política».

  14. Caro José Luiz,

    Faz muito sentido o que escreves acima, e era interessante cruzar essa reflexão, e o estudo que indicas, com o seguinte post do Paulo Guinote:

    Paradoxos… Ou Não

    Mas insisto no meu ponto: se o governo e os seus responsáveis pela Educação não tivessem passado os últimos anos dedicados a atirar sobre os professores e, ao contrário, os tivessem acarinhado, respeitado e dignificado a situação poderia não ter atingido uma tal gravidade.
    Pode sempre dizer-se que tudo isto tem conexões com políticas transnacionais, com organismos europeus, etc etc, mas eu recordo que nos Açores e na Madeira o disparate não foi tão longe. Se houvesse vontade política, a nível nacional, para inverter o rumo e dar aos professores todo o reconhecimento que merecem, nada nem ninguém o poderia impedir. Curiosamente, com os militares as coisas passam-se de outro modo. Bem me recordo que o senhor presidente da República não teve pejo em vir a público defendê-los. Porque será que fala em defesa de uns e mantém um silêncio criminoso em relação a outros? A política não é apenas feita de teorias e ideologias é, acima de tudo, feita de homens! E não me cansarei de lhes exigir responsabilidades.

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