Opinião – Mário Machaqueiro

DEMOCRACIA (NAS ESCOLAS), 50 ANOS DEPOIS

Na sua crónica mais recente da revista Sábado, Pacheco Pereira faz uma distinção entre liberdade e democracia, para dizer que, se em matéria de liberdade as conquistas desde 1974 são inegáveis, já o mesmo não se pode dizer relativamente à democracia, acentuando, nomeadamente, como a nossa soberania democrática tem vindo a ser coarctada e mutilada desde que os governos portugueses aceitaram – sem terem consultado democraticamente os cidadãos – alienar boa parte dessa democracia a instituições europeias que de democrático nada têm – desde logo por nem sequer emanarem de qualquer representatividade genuína, como sucede, de modo flagrante, com a Comissão Europeia ou com o Banco Central Europeu.

Podemos, contudo, ir mais longe na análise. Na maioria das sociedades ditas democráticas, o exercício da democracia está reduzido ao acto, sazonal e cada vez mais anémico, de um voto crescentemente interpretado, pela oligarquia política, como uma espécie de carta branca que os cidadãos conferem aos governantes, ou aos seus supostos representantes parlamentares, para tudo decidirem sem o menor escrutínio popular. Pior do que isso: mesmo esse exercício, já de si diminuto, confina-se a um espaço mais ou menos público, quando os outros espaços, mormente os de trabalho, podem ser atravessados por formas, encapotadas ou manifestas, do maior despotismo.

O caso das escolas públicas portuguesas – nem falo das privadas – constitui uma boa ilustração. E um exemplo cabal do que fomos perdendo ao longo destes 50 anos, com especial incidência nos últimos 20. Desde o período da famigerada dupla Sócrates-Maria de Lurdes Rodrigues, quando o poder governativo apostou em degradar a condição profissional dos professores, estes viram ser-lhes retirado qualquer controlo democrático sobre o seu espaço laboral. Todo o quadro de colegialidade na tomada de decisões, através de órgãos democráticos que se tinham vindo a consolidar na sequência da democratização das escolas após a Revolução de 1974-75 – o Conselho Directivo, o Conselho Pedagógico, os grupos disciplinares (democraticamente representados no Pedagógico) -, órgãos que eram uma emanação das escolhas dos professores de um dado estabelecimento de ensino, tudo isso foi varrido pelas reformas de Lurdes Rodrigues que impuseram a figura de uma direcção unipessoal, a qual passou a decidir, unilateralmente, as escolhas das chefias intermédias e a própria composição do Conselho Pedagógico.

O processo de tomada de decisão, no interior das escolas, foi totalmente invertido e subvertido: em vez de o Conselho Pedagógico discutir as decisões aprovadas no seio dos vários grupos disciplinares – que era o que acontecia quando, nesse órgão, se sentavam os representantes democraticamente eleitos pelos respectivos grupos -, o dito Conselho, tornado uma marioneta dos directores, passou a ser uma mera correia de transmissão, para os grupos e para cada professor, das decisões concebidas pelos directores. Desse modo, os professores ficaram reduzidos ao papel de meros executores de decisões sobre as quais não têm uma palavra a dizer, consumando-se assim a absorção da escola por um modelo empresarial estruturalmente anti-democrático.

Se hoje se fala tanto em devolver atractividade à profissão docente, tal teria também de passar, necessariamente, por redemocratizar a vida laboral nas escolas, reinstaurando ou reinventando um modelo democrático de administração escolar. O que vemos, porém, no programa do actual governo está a anos-luz deste desiderato, quando se perfila, no horizonte, a cristalização da figura do director através da criação de uma carreira própria para o exercício desse cargo. 50 anos depois, temos de reconhecer que o conteúdo democrático das escolas se esvaziou consideravelmente, para hoje nada mais restar do que uma hierarquia, bem oleada, de relações de poder desigualitárias ou assimétricas. Nas escolas públicas, o “25 de Abril sempre” tornou-se letra morta. E, com os interesses que se foram instalando, seria preciso outra revolução para recuperá-lo.

Mário Machaqueiro

1 thoughts on “Opinião – Mário Machaqueiro

Deixe um comentário